Opinião – O passado vivido e aquele que é contado
Ocupado, enquanto historiador, com um tempo próximo do que tenho de vida – dos anos cinquenta ao presente – deparo habitualmente com um conflito. Os historiadores sabem que não existe descrição fechada ou interpretação unívoca do passado, pois circunstâncias, subjetividades e meios determinam olhares divergentes; mas sabem também que os factos do passado não podem ser modificados. Não pode, por exemplo, afirmar-se que John Kennedy continua vivo, ou dizer-se que o Holocausto é uma fantasia criada por judeus, quando existem provas de que assim não é. Todavia, há quem não hesite em inventar ou em falsificar o passado, sobretudo aquele mais próximo, para que este possa corresponder às suas expectativas e interesses.
Por este motivo, e é aqui que se situa esse conflito, tenho deparado muitas vezes com pessoas ou entidades que se dedicam, intencionalmente ou sem uma consciência clara do que estão a fazer, a distorcer o passado ou a fabricar um à sua medida, jamais aceitando depois ser confrontadas com dados que desacreditem as suas interpretações. Poderia dar aqui dezenas de exemplos, mas limito-me a três, relacionados com temas do passado que me interessam e sobre os quais tenho trabalhado, e que se articulam também com a realidade objetiva com a qual convivemos.
O primeiro refere-se à forma como os dois grandes sistemas concentracionários do século passado – os campos de extermínio da Alemanha nazi, e o Gulag estalinista, replicado na China de Mao – são encarados de forma profundamente desigual. Se sobre o primeiro a memória do sofrimento, da crueldade, do extermínio e do trauma são quase consensuais, salvo para os negacionistas apoiados em falsidades e teorias da conspiração, já sobre o segundo, a informação é bem menor e muita dela é boicotada, mesmo sabendo-se que, tendo objetivos diversos dos do Holocausto, envolveu análoga escala de dor, bem como uma extensão de tempo e um número de pessoas bem maiores. Disparidade que tem aberto caminho ao esquecimento ou à normalização dessa terrível experiência.
O segundo exemplo respeita à história do movimento estudantil em Coimbra entre os anos cinquenta e o fim do regime. Tem sido bastante estudado e é hoje justamente olhado como uma «escola de democracia», instrumental na formação de uma opinião favorável à queda do Estado Novo. Todavia, parte dos que nele participaram até à «crise de 69», e também muitos dos que em democracia têm integrado a vida associativa estudantil, tem – por motivos que se prendem com alguma autolegitimação histórica – ignorado a importância dos intensos anos do movimento vividos entre 1971 e 1974. Período em que este se radicalizou, passando a contestar diretamente o regime e a guerra colonial, sendo por isso objeto de uma repressão policial muito mais feroz, e rejeitou também como retrógradas e elitistas algumas práticas culturais tradicionais da academia.
O terceiro exemplo, muito importante quando nos aproximamos dos 50 anos volvidos sobre o 25 de Abril, alude à forma como no sistema de ensino são hoje ensinados os combates da oposição aos governos de Salazar e Caetano, bem como as transformações do rico e complexo período revolucionário. Enquanto os primeiros são praticamente omitidos, dando a errada ideia de que a maioria da população aprovava a opressão, a ditadura e a guerra, o segundo passa por um relato muito truncado, que fornece às novas gerações a impressão de corresponder apenas a uma fase conturbada, cheia de «erros» e «exageros», desta forma disseminando a indiferença pelas conquistas da democracia.
Não é tarefa simples contrariar os esforços de quem nega, silencia, amputa ou reescreve parte da história. Sobretudo quando o que é manipulado tem ainda influência direta nas vidas e nas certezas de quem recolhe o seu impacto. Não se apercebendo de que herdou, afinal, um passado bem mais complexo e dinâmico do que aquele que lhe é relatado.