Opinião: “Novo ciclo Político (III) – Reforma do modelo dos serviços de urgência”
A sempre anunciada, mas sistematicamente adiada reforma do modelo dos serviços de urgência (SU) e a resposta a dar para o milhão de pessoas sem médico (e equipa) de família atribuído, mesmo que faseada, são dois dos principais desafios para os próximos tempos.
Todos os anos, nesta altura, este ano um mês mais tarde pela recente epidemia de gripe fora de época, assistimos a um cenário preocupante e alvo de notícias na comunicação social sobre o aumento dos tempos de espera nos SU com uma clara sobrelotação destes serviços.
Este é, de facto, um dos maiores problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que se arrasta há décadas, já foi dissecado por sucessivos grupos de trabalho e comissões, mas continua por resolver e parece não ter um fim à vista.
Somos o país europeu em que os cidadãos mais recorrem às urgências hospitalares (sete em cada dez portugueses visitam anualmente um SU, quando a média europeia é menos de metade deste valor). Em média, 40% destas admissões não são urgentes (pulseiras verdes e azuis) e poderiam ser resolvidas noutro local do ambulatório.
Os Cuidados de Saúde Primários (CSP), leia-se Centros de Saúde (CS) são frequentemente apontados como uma das causas para esta falta de resposta dos SU às necessidades da população. Todavia, está provado, que só por si, o aumento da acessibilidade aos Centros de Saúde, também não diminuiu a utilização inadequada do SU. Recorde-se que até 2005, 90% dos Centros de Saúde estavam abertos 24 horas por dia e o problema já existia! Mais, entre as 8h e as 20h, horário de funcionamento de todos os Centros de Saúde, é o período que concentra em média 75% das admissões nos SU, ficando as restantes 25% no horário das 20h às 8h da manhã.
As pessoas recorrem à urgência porque querem soluções rápidas e na hora que os CS e os hospitais fora do SU não lhes conseguem dar: análises, Raio X, TAC, ecografias e segunda opinião de especialistas hospitalares.
Querem resolver a cera no ouvido ou avaliar a diminuição da audição porque esperam nove meses por uma consulta de Otorrino. Quem tem seguros ou ADSE vai ao privado.
Há uma deturpação de expectativas.
É um problema muito complexo, estrutural e não sazonal, de literacia, de organização do SNS, de qualificação dos recursos e dos circuitos.
Para enfrentar este problema, é preciso uma reforma profunda. O problema não é só o de falta de médicos e de enfermeiros de família — temos de ter localmente, coordenação colaborativa dos dois sistemas – SU/Hospital e CS. Só a coordenação permitirá adequar a oferta, identificar os papéis de cada um dos sistemas, percebendo as expectativas do cidadão e reduzir a redundância.
Temos de regular o acesso ao SU, garantir que, por norma, as pessoas só vêm encaminhadas pelo INEM, pelo SNS24 (rever e atualizar os algoritmos) ou pelos CS ou referenciadas por outros médicos ou serviços de saúde.
A possibilidade de rápida e adequada referenciação entre as duas redes é fundamental, criando-se vias verdes no hospital e/ou na comunidade para acesso no próprio dia a exames auxiliares de diagnóstico ou marcação de consultas “abertas” no hospital.
Nos Centros de Saúde, é necessário aumentar a real acessibilidade ao médico e enfermeiro das 8h às 20h, respondendo no próprio dia a todas as solicitações agudas, seja em presença física, por via telefone e email ou no domicílio, mantendo o doente em casa, apoiado e seguro.
A identificação de utentes com elevado recurso à urgência, os grandes utilizadores, é também, fundamental. Deve-se olhar para eles e elaborar em conjunto, o plano individual de cuidados. Sem esquecer de olhar para um grupo particular de doentes que são os idosos, frágeis, com múltiplas doenças, a maioria a viver em lares/ERPI para os quais é necessário a criação de um plano de acompanhamento, apoio, triagem dos residentes em lares – e trabalho conjunto dos Centros de Saúde e dos serviços hospitalares.
Por fim, no SU deve existir numa aposta em equipas dedicadas, para melhorar o funcionamento destes serviços, que dependem muito do trabalho de tarefeiros precários, muitos deles sem experiência a fazer urgências seguidas em diversos hospitais.
Precisamos de uma carreira atrativa centrada em modelos organizacionais que gerem incentivos, porque este é um trabalho desgastante e de risco.
(Pode ler a opinião na edição impressa e digital)