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Opinião: Que confusão, bráder!

18 de fevereiro às 13h30
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Durante vários anos vivi intrigado, de cá para lá com os livros, anotando contradições nas palavras, vendo nelas silhuetas nascendo em aparecimentos.

Umas vezes cómicas, outras vezes trágicas. Vi Mia Couto falar de um tal “administraidor”.

E da personagem Azarias, que “negará de ouvir quando for chamado”, muito “cabistonto” (para poupar o desperdício de adjetivar cabisbaixo e tonto). As luzes ao fundo, “pirilampiscando”, o homem “liquedesfazendo-se”, banhando-se de pingos “achuviscados” e afogando-se em si mesmo.

Vi questionar se “afogar” é morrer na água ou morrer no fogo. E “avioneta”, não será a neta do avião?

O angolano Ondjaki, no seu português inventoso, também se enregou à tarefa de criar palavras para dizer coisas que nenhuma outra diz.

De que outra forma se transmitiria as noites que “adescaem”, as estrelas que se “agrilam”, as raposas “agalinhadas”, e o menino que “enquerindo” saltitar, “apulga-se”.

Na minha imaginação, fiz a mesma pergunta a Ondjaki: Bráder, “afogar” é morrer na água ou morrer no fogo? Ele (faz-de-conta), se “adesculpando”, respondeu: “Aderreter, aqueimar… Não sei rexplicar.

É melhor sair de mansinho.

Vou fingir-me para doenças”.

Mas eu insisti: Bráder: o que é “afogar”? Ele: “o fogo aquece, aderrete, aqueima, alumeia, alameja, almofadeia”.

Que confusão, bráder, o fogo aleija, disse eu.

Mas ele retorquiu: “E depois? Chorar alimpa mundos”.

Chorar provoca um mar “infintável”, disse eu.

“Qual quê? Isso não é mar! Porque se fosse, as ondas “engolfinhavam-se”.

É isso, bráder, disse eu.

É rio, pois a água é “endocicada”.

Toda a gente sabe que o machado é a pior coisa que há no mundo.

Quem não souber que pergunte à árvore. Ou leia Ondjaki. Que vá saber junto do lenhador, que, “de cortar arvorezinhas, tinha arrepios mortíferos – avomiterações”.

Na sua novela “O Bem Amado”, o escritor e dramaturgo brasileiro Dias Gomes inseriu criações lexicais que parodiam o vocabulário culto. O personagem Odorico reflete bem o traço político fala-caro, com expressões como: “agoramente, aindamente, mesmamente, deverasmente”.

Assim, “agoramente já investido no cargo de prefeito, aqui estou para receber a confirmação”. O seu campo prossegue, sem grilhões que prendam a criatividade: “Nunca vi tanta vocação para agonizante.

É um “agonizantista” praticante”.

Ou “quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas para ser enterrado?”.

Boa parte dos autores de língua portuguesa que se aventuram em neologismos, esse talento de criar palavras novas que não fazem parte de um repertório oficializado, buscam inspiração no brasileiro João Guimarães Rosa e na sua composição satírica, muitas vezes com sentido anedótico.

São dele expressões como “embriagatinhar” e “circuntristeza”. Tal como é de Millôr Fernandes uma das minhas favoritas: “a cartomente”.

Chegado aqui, quero justificar este texto.

O meu filho mais novo, o Francisco, num exercício de português, disse que “contratempo” é “o tempo ao contrário”.

Eu pensei. Pensei muito.

Num primeiro assomo fui tentado a corrigi-lo.

Mas depois percebi que tinha o dever de desistir da tristonha teima.

Tanta leitura deu-me autorizações para usar as palavras como quisesse.

A língua é o sonho da comunicação.

É o sonho “abensonhado”, como disse Mia Couto.

Mas dizem também muitos outros, como James Joyce, Katebe Yacine ou Luandino Vieira.

Este último conquistou o Prémio Camões “pelo seu contributo para a reinvenção da língua portuguesa”.

O facto de haver sintaxe dentro das palavras permite a criação constante de palavras novas.

Eu sei que isto pode gerar assoluçamentos em muitas mentes gramaticantes e corretoras.

Para essas, desinfelizes, prescrevo assilêncios.

Amanhã passa.

Será um desacontecimento

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