Opinião: O risco de escrever demais

Num livro publicado em 1961 – Os Condenados da Terra – Frantz Fanon explicou como se faziam as lavagens cerebrais aos nacionalistas argelinos submetidos ao império colonial francês. Uma vez presos, eles eram convidados a escrever textos em louvor do colonialismo. Esses textos eram classificados de acordo com a bondade dos argumentos a favor do Império. Atingida uma certa classificação após dezenas de textos, os prisioneiros eram libertados. Contudo, saiam confusos e, mesmo que não passassem a defender o colonialismo, abdicavam completamente da sua militância a favor da libertação das colónias. Não eram mais capazes de a defender.
Quem escreve um texto, sobretudo de opinião, coloca-se numa armadilha. É difícil saber se é o autor que domina o texto ou se é o texto que passa a dominar o autor. Todas as pessoas que escrevem sabem e costumam ler, mas dão pouca conta da influência que as leituras têm sobre si. De facto, a liberdade do seu pensamento depende muito da variedade das leituras e fontes de informação. Mas quem escreve demais corre o risco de mais ler o que escreveu. E aí, a liberdade de pensar afunila-se.
Os argelinos descritos por Frantz Fanon escreviam contra aquilo que pensavam, e o resultado foi apenas ficarem confusos. O mais frequente, porém, é escrever com forte motivação. Um sentimento paroquial, simples ou complexo, pode motivar a escrita de milhares de páginas. Muitas vezes é um discurso acusatório dirigido a algum grupo de pessoas: judeus, árabes, mulheres ou mesmo um grupo imaginário. Conheci um homem a fazer diálise que me trazia dezenas de páginas contra a “Medicina”, de que precisava para sobreviver mas por quem se sentia perseguido. A criminologia está cheia de casos em que os escritos secretos acusatórios culminaram em homicídios colectivos. Quem escreve contra alguém e só lê os seus próprios escritos, reforça as crenças destrutivas e pode passar ao acto.
Hoje, escreve-se mais facilmente em teclados do que em papel. Mas escreve-se muito, e arriscaria dizer que as pessoas passam mais tempo a ler aquilo que escrevem do que a escrita dos outros. Os textos mais visíveis são os que aparecem na Internet e no Facebook. São mensagens muitas vezes impetuosas (que nem sempre se produziriam na presença dos outros), pouco argumentadas e mal interpretadas. E aparecem-nos filtradas por um algoritmo que reforça as convicções de cada um.
Quanto mais uma pessoa exprime então as suas ideias, mais convencida fica delas. O contraditório desapareceu do discurso público desde que este se reduziu aos diversos tipos de mensagens que, no sossego das nossas casas, despejamos nos smartphones. Auto-convencidos, começamos a ser intolerantes para quem pensa diferente, e como não existem duas pessoas que pensem da mesma maneira, a intolerância generaliza-se. E creio que ela será maior quanto mais se reduzem os contactos interpessoais. A propósito de tudo e de nada, é fácil perceber a zanga que anda agora pela via pública.
É por isso que, por mim, não vou mais ler esta crónica. Até me posso convencer de que aquilo que escrevi é a pura verdade.