Opinião: “O cuidado como ato de resistência”

Joan Tronto, na obra “Moral Boundaries: A Political Argument for an Ethic of Care”, lembra-nos que o cuidado não é um ato isolado, mas uma responsabilidade relacional que sustenta a própria essência da sociedade. A autora propõe a ética do cuidado como princípio fundamental da vida coletiva, presente em todas as suas dimensões, desde as relações mais íntimas até às estruturas políticas e económicas. No entanto, num sistema social cada vez mais individualista e marcado pela competitividade, essa noção tem vindo a diluir-se, transformando a forma como nos relacionamos em todas as esferas da vida.
Se, por um lado, a sociedade moderna exalta a produtividade e o sucesso individual, por outro, aprofunda o isolamento, tornando o cuidado uma prática cada vez mais rara.
Nas ruas de Coimbra, como em tantos outros lugares, cruzamo-nos regularmente com idosos solitários, sombras silenciosas que vagueiam pelos seus afazeres, ansiando por uma conversa que raramente acontece. No espaço público, o número de pessoas sem-abrigo cresce, tornando-se parte da paisagem urbana, como mobiliário invisível diante da pressa de quem passa. Nos transportes, os olhares permanecem presos aos ecrãs, alheios ao coletivo que os rodeia, ignorando quem precisa de um lugar ou apenas de um momento de interação. No trabalho, a obsessão pela produtividade inibe a solidariedade, reduzindo gestos autênticos de atenção a meros formalismos. A cidade – esse espaço de encontro e partilha – transforma-se num palco de vidas paralelas, onde cada um cumpre o seu papel sem se desviar do guião.
Cuidar parece ter-se tornado um luxo – ou pior, uma fraqueza. Num mundo que valoriza a rapidez, o pragmatismo e o lucro, onde até o cuidado se tornou mercadoria, dedicar tempo a ouvir, compreender, acolher e apoiar é frequentemente visto como um desvio num percurso guiado por um ideal de ‘sucesso’ que ignora a importância das relações humanas. Assim, muitos hesitam, receando perder – e perder-se – ao voltarem-se para o outro.
O que deveria ser um gesto essencial transforma-se, muitas vezes, num fardo, tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado. Para quem cuida, há o receio de se diluir no outro, de negligenciar as próprias prioridades. Já quem recebe cuidado pode sentir a angústia da dependência, num mundo que exalta a autonomia e desvaloriza a vulnerabilidade.
Num cenário marcado pela indiferença, a resistência floresce nos atos de cuidado. Há quem pare para ouvir, quem estenda a mão sem esperar nada em troca – pequenos gestos necessários, individuais e resultado de iniciativas comunitárias, que, apesar de discretos, desafiam a frieza dos tempos e preservam a esperança de um mundo onde o cuidado esteja no cerne da vida.
Uma sociedade que negligencia o cuidado enfraquece os laços que a sustentam, reduzindo-se a um conjunto de solidões que coexistem. Fomentar a prática do cuidar é, portanto, um ato essencial de resistência e renovação, fundamental para que a sociedade não se desintegre na indiferença, mas se fortaleça na empatia. Resistir exige não apenas reflexão, mas também ação coletiva, onde cada um, no dia a dia, assuma o compromisso de valorizar o outro e reconstruir os laços que nos sustentam.
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