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Opinião: Lugares (na cidade) em que a vida é o essencial

03 de janeiro às 12h33
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A pouco e pouco a Cidade vai-nos empurrando para dentro de casa. Há quem insista em dar os bons dias àqueles com quem se cruza no bairro, mas até esse hábito já se vai perdendo. E há mesmo quem não reconheça a Coimbra em que nasceu, na desarrumação que o negócio imobiliário instalou, com a cumplicidade empenhada de permissivos autarcas.
Os lugares de encontro rareiam – diz-se que é por causa da alteração dos costumes – e eu nunca me esquecerei do que me disse um guarda-freio no tempo em que se anunciou o assassinato do carro-elétrico (por razões de deslumbre novo-rico): “quando a Baixa deixar de ser necessária a quem cá vive e aos que aqui chegam, morre”.
Está provado que as cidades são organismos mimosos, fáceis de ferir de morte com tão-só trocar as voltas à gente que lhes dá vida. Mataram o Mercado D. Pedro V no dia em que o esventraram para o “modernizar”; mataram a Baixa no dia em que a quiseram pedestre e lhe interromperam o acesso de moradores e clientes. Ficaram ambos mais bonitos? Talvez, mas abandonados. Porque os que lhes cuidavam o perfil foram obrigados a seguir outros caminhos, e nunca mais regressaram.
Entretanto outros lugares se construíram, anunciando largueza para os passos das pessoas e acolhimento de negócios, prometendo alternativa ao encerramento de lojas e oficinas, esplanadas e drogarias, mercearias e discotecas, livrarias e cafés. Quase todos se extinguiram em menos tempo do que o Loureiro dos Cafés e a Livraria Atlântida: o Golden, o Avenida, o D. Dinis, mas também o Gira, o Mayflower e o Primavera são hoje ruínas de promessa de espaço público. As mercearias, pelo seu lado, foram definhando até serem esmagadas pela vintena de grandes e médias superfícies que invadiram a Cidade.
Vá lá saber-se porquê, um pequeno e improvável bairro foi-se formando na linha de fronteira da Solum, juntando moradores e comerciantes num diversificado mundo onde se pode comprar um quilo de arroz, um ramo de flores, um livro, um jornal, um éclair de chantilli, meia dúzia de papo-secos; onde se pode subir a bainha às calças, comprar a prenda de Natal (seja uma caneca, um par de brincos ou uma peça de roupa), pôr ordem na melena, cumprir o ritual da bica, tratar de si, almoçar como deve ser.
Mais bem batizado do que aquilo que o seu proprietário há de ter desejado, o Atrium Solum tornou-se o espaço residencial a que a designação corresponde, muito além do apenas-ganho de mal-intencionados contratos de arrendamento de curta duração. No Atrium Solum juntam-se amigos a meio da tarde para as conversas à volta do café, reúnem-se professores em encontros de trabalho, brincam crianças defendidas do trânsito automóvel, visita-se a exposição de objetos de outros tempos, comparece-se no lançamento de um livro, entre palavras e música. Herdeiro involuntário d’A Brasileira e do Arcádia, o Atrium Solum reinventa nos nossos dias a Coimbra das tertúlias, o espaço essencial fora de casa (que é morada também).
A cadeia de distribuição Mercadona quer comprar o Atrium, e o proprietário do Atrium quer vender. Assim vistas as coisas estaríamos perante uma transação feliz, traduzida no movimento da soma acordada de uma conta bancária para outra. Mas não é (nem pode ser) assim.
Vistas as coisas como deve ser, quando se trata de Cidade, o que está em causa é a vida de muita gente – entre malha empresarial, usufruto de serviços e qualidade de vida (o tal indicador que as cidades tanto gostam de exibir). O que está em causa é a permanência de ofícios que ali se reuniram por serem necessários a uma vasta comunidade, numa teia que se foi formando e constituindo aquilo a que se dá o nome de Urbe. O que está em causa, afinal, é a opção entre a cidade-objeto e a cidade humanizada.
A entrada de um Ano Novo é a melhor das ocasiões para celebrarmos e defendermos os lugares em que as pessoas e as suas vidas – entre o trabalho e o lazer – são mesmo o mais importante.

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