Opinião: Diagnóstico de Natal
O homem duro de ouvido suspeitava que o seu caso é estranho devido ao medicamento que lhe receitaram para o coração na última vez que esteve no hospital. Devido à idade avançada, não queria voltar a pôr lá os pés a dois dias do Natal. E temia pelo diagnóstico.
– Ó Doutor, eu…
– É melhor ir a Coimbra fazer análises, concluiu o médico de uma assentada depois de duas pequenas voltas ao corpo de estetoscópio, salientando que “nos Covões só atendem os Covid, por isso tem de ir para os HUC”.
A jovem médica de família, cumprindo o procedimento, concordou com o médico nas “urgências” do Centro de Saúde.
– Se está no sistema [informático], vai correr tudo bem.
E saiu da sala com um “Bom Natal e que corra tudo bem”.
A reação foi de lágrima na face. O doente, que gosta de ser alvo de cuidados de vária origem, não escapou à regra no Centro de Saúde onde é hábito saltitar de médico em médico.
Como diria Namora, o estudo ponderado da marcha da doença nunca é igual à dos livros nem à de todos os outros casos com o mesmo rótulo.
Lá fora, o bombeiro voluntário leu a “carta” do médico das “urgências” e afirmou:
– Se o problema é respiratório tem de ser para os Covões.
– Mas o médico disse que era para os HUC…
– É assim, os HUC vão enviá-lo para trás, é limpinho.
Perguntei se poderia ligar à chegada ao hospital para se fazer o acompanhamento dele.
– Isso não fazemos. Têm de ligar para o hospital.
Não entendi a complexidade da logística que o impedia de informar a família dando conta da enfermaria onde seria entregue o homem com cerca de 100 anos de idade.
O velhote lá seguiu viagem. A insuficiência respiratória dele ficou com os familiares até ao dia seguinte sem conseguirem ligar para a única linha de atendimento hospitalar. Devem ter esquecido o telemóvel no bolso da bata de alguém que mudou de turno…
Vinte e quatro horas depois, o hospital ligou à família para informar que “já teve alta”, salientando que “se quiserem, podem vir buscá-lo porque se for de ambulância pode ir às 14h ou à meia-noite. Não é certo”.
– E qual é o quadro clínico?
– Isso têm de falar com o médico de família. Vai explicado na carta.
À chegada, vimos que estava agastado. Não era para menos. E a “entrega” foi feita ao frio, na entrada da mesma porta com cheiro a suor doentio onde também chegam os evacuados de Covid-19 com roupa infetada. E veio lá de dentro sem acompanhamento elucidativo.
– Não é habitual os médicos falarem com os utentes. Vai tudo na carta.
E ninguém veio. É desumano. A carta médica foi entregue por mão no Centro de Saúde, poupando ao Estado as despesas de envio e comunicações.
Bela crónica, borrada na última frase. Com os meios electrónicos existentes hoje em dia, não há nada que o estado esteja a poupar pela entrega da carta em mão. Será para obrigar o doente é ir novamente ao Médico de Família e continuar o acompanhamento. O resto, é, infelizmente, o retrato da maioria dos funcionários dos nossos hospitais, sem qualquer ponta de humanidade e onde os doentes são meros objectos (ou clientes como já ouvi chamar) e ninguém se preocupa que do outro lado estão pessoas.