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Opinião: Cartas para o Céu

06 de setembro às 11h27
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No Japão, um país onde as tradições milenares convivem com as dinâmicas da modernidade, uma prática singular tem vindo a ganhar destaque, oferecendo uma forma única de lidar com o luto. Em diversas regiões nipónicas, as “Cartas para o Céu” tornaram-se um meio pessoal e significativo de comunicação com os entes queridos que já faleceram, ajudando os vivos a encontrar conforto e a manter uma ligação espiritual com aqueles que partiram.
Um dos lugares mais emblemáticos desta prática é Yomotsu Hirasaka, localizado em Matsue, na Província de Shimane. Este local, mencionado no “Kojiki”, uma das crónicas mais antigas do Japão, é considerado um ponto de transição entre o mundo dos vivos e o dos mortos. No topo de uma colina, ao longo de um trilho rodeado por árvores antigas que sussurram lendas, encontra-se uma caixa de correio peculiar, destinada a enviar mensagens ao “outro lado”. Todos os anos, em junho, um ritual é realizado, durante o qual as cartas são queimadas, como forma simbólica de as entregar aos destinatários no além. Este fogo, visto como purificador, transforma as palavras escritas em cinzas que se elevam, acreditando-se que assim alcancem o reino espiritual.
Esta prática não se limita a Yomotsu Hirasaka. Tem-se espalhado por todo o país, com outras regiões a adotarem a ideia e a instalarem caixas de correio semelhantes, cada uma com sua própria história de dor e resiliência. Em Rikuzentakata, na Província de Iwate, por exemplo, uma cidade devastada pelo tsunami de 2011, uma caixa de correio foi instalada num café, três anos após a tragédia. Inicialmente, foi uma forma de consolar os que perderam familiares no desastre, mas rapidamente se tornou um refúgio para todos os que procuram uma maneira de lidar com a perda.
É interessante notar como o processo de luto contrasta com as tradições em Portugal. Enquanto nós, portugueses, tendemos a expressá-lo através de rituais mais públicos e coletivos, como os funerais seguidos de missas e visitas regulares aos cemitérios, no Japão, práticas como as “Cartas para o Céu” oferecem uma abordagem mais íntima e individualizada. Este ato de escrever para os falecidos permite uma conexão pessoal e contínua, algo que, no contexto português, se manifesta mais através de lembranças e do convívio com a comunidade em datas comemorativas ou durante o “Dia de Todos os Santos”.
A sol nascente, onde o respeito pelos antepassados e a valorização das emoções profundas são elementos centrais da cultura, as “Cartas para o Céu” continuam a ser um elo entre o presente e o além, ajudando as pessoas a navegar pela dor da perda e a encontrar serenidade na despedida. A transformação do íntimo em ritual, do pessoal em eterno, revela uma maneira única de lidar com o luto que, embora diferente, ressoa de forma universal.

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