Opinião: As nossas faltas e as dos outros
Num dos mais célebres poemas/salmos do Antigo Israel, o poeta dirige-se a Deus, questionando “Se Tu, Senhor, tiveres em conta os pecados,/ ó Senhor, quem poderá resistir?”
Esta atitude de profundo auto-conhecimento, identificando as suas próprias faltas, não é exclusiva do judeo-cristianismo e encontra eco em múltiplas correntes espirituais, desde o “conhece-te a ti mesmo” da Grécia Antiga, à introspeção budista. O cristianismo é naturalmente herdeiro desta forma de olhar para o outro e para si mesmo com realismo, conforme o próprio Cristo exemplifica constantemente, chegando a perguntar com dureza: “Porque vês o cisco que está no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu olho?”.
Este constante reconhecimento das deficiências humanas, sobretudo das dos outros, foi e continua a ser exacerbado por correntes de gente “pura” e “boa”, “gente de bem”, exímios em encontrar as faltas alheias e denunciarem-nas em discursos de indignação. Chega a haver quem, no seu fervor pelo bem e pela justiça, odeie o próximo em nome do amor ao próximo.
Uma forma mais realista de olhar para si próprio e para os outros encontra-se na vida e escritos do célebre filósofo Agostinho de Hipona, que relata nas suas Confissões que, na vida desregrada da sua juventude pedia frequentemente a Deus (não sem uma ponta de bom-humor): “Dá-me castidade e continência, mas não agora.” (Confissões VIII, 7, 17 )
Nesta altura delicadíssima da nossa vida coletiva, as faltas dos responsáveis dos órgãos de soberania assumem uma inegável e estranha ressonância, com necessidade de esclarecimento cabal de acordo com os mecanismos do estado de direito democrático. Desde logo, as faltas dos “impuros”, os políticos detentores do poder, que sem qualquer distinção são condenados no tribunal da opinião pública, numa versão séria do julgamento presidido pelo Rei de Copas no País das Maravilhas, em que mal se ouve a acusação logo é solicitado o veredito dos jurados, sem sequer ouvir as testemunhas. Mas também os “puros” estão no centro das atenções, assumindo destaque os órgãos de investigação criminal, acusados por muitos de parecerem estar possuídos por conceções pré-iluministas de justiça em que, “pronunciado um homem no Santo Ofício, logo o mandam prender, tratando-o como se já estivera convicto”, conforme se queixava o Pe. António Vieira ao papa Clemente X.
Este contexto desafiante, que os adversários da democracia tentam usar para a destruir, só é, contudo, possível numa democracia madura: é bom recordar que há cinquenta anos atrás a mais leve mancha que afetasse os órgãos de soberania seria imediatamente suprimida num circuito de informação sujeito a forte censura e em que a investigação criminal não era independente. Éramos todos tão mais sérios e mais honestos, nesse tempo… Cumpre ainda assim a cada um de nós refletir seriamente em que medida contribui ou tem contribuído para a degradação da “coisa pública”, seja contribuindo para os atos dos “impuros”, seja contribuindo para a não menos perigosa e destruidora demanda dos “puros”. Talvez devamos contribuir para a necessária mudança através da conhecida e pouco aplicada receita: “Muda-te a ti mesmo para que tudo à tua volta também mude”.