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Opinião: A ária da rainha da noite

28 de fevereiro às 10 h49
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A ópera “A Flauta Mágica” é umas das mais bem-amadas obras de Mozart.

O seu enredo fantástico, incluindo o divertido Papageno, torna-a numa ópera frequentemente aconselhada ao público infantil.

Contudo, o enredo fantasioso contém uma fortíssima crítica, inspirada pela filiação maçónica de Mozart, ao absolutismo político vigente à época e ao fanatismo “religioso” então dominante.

A “Igreja” fanática é personificada pela Rainha da Noite, personagem atribuída a uma voz feminina dita de “coloratura”, capaz das mais fantásticas e extremas acrobacias vocais.

Esta personagem canta apenas duas extraordinárias árias, sendo a segunda a mais celebrada e que por vezes é simplesmente referida como “ária da rainha da noite”.

Desde a sua estreia em 1791, esta ária, a cargo das cantoras mais ágeis, tem maravilhado gerações, com a sua melodia encantadora em harpejos sobreagudos após as palavras “meine Tochter nimmermehr”.

A ária é também frequentemente cobiçada por cantoras amadoras, das quais porventura a mais famosa é uma mecenas americana conhecida pela sua incapacidade de acertar nas notas e retratada de forma inesquecível por Meryl Streep no filme com o seu nome: Florence Foster Jenkins.

As gerações que se deliciam com esta peça extraordinária de música, recomendando-a vivamente às crianças, não prestam a devida atenção ao discurso de ódio subjacente. A rainha dirige-se à sua filha Tamina e coloca-lhe um punhal na mão, ordenando-lhe que assassine Sarastro, seu inimigo (o qual tem prodigalizado a sua bondade a Tamina), culminando na chantagem: “Se Sarastro não conhecer a dor da morte através de ti, então não serás minha filha nunca mais” (meine Tochter nimmermehr).

Para os contemporâneos de Mozart, era evidente a referência à intolerância religiosa, caracterizada pelo seu comportamento em flagrante contradição com o Evangelho, com a lei mosaica e até com a lei natural.

Apesar das manipulações a que foi sujeito, o Evangelho não deixou então de ser utilizado como padrão para aferir a hipocrisia daqueles que o utilizavam de forma contraditória.

Vale a pena recordar que, nos alvores da Inquisição em Portugal, o primeiro inquisidor D. Diogo da Silva logo em 1532 manifestava fortes reservas sobre o cargo, argumentando “que avia de votar para muerte de hombres”.

Tal como acontece agora em muitos outros contextos (basta atentar a certas argumentações distorcidas que surgiram nos últimos dias, até em Portugal, a justificar a inaceitável agressão do autocrata russo à Ucrânia), não faltava porém quem encontrasse justificações para o injustificável, fazendo piruetas de argumentação envolvidas em malabarismos retóricos, qual soprano de coloratura.

E havia quem aplaudisse, apoiasse e se deixasse enlevar pela música, sem prestar atenção ao conteúdo persecutório, assassino de vidas alheias. A (tragi)comicidade destas contradições foi aliás e continua a ser fonte de inspiração para o seu combate.

Na já longa história da interpretação desta ária, há assim apenas uma intérprete cujos registos fazem plena justiça ao conteúdo dissonante, arrepiante e tragicómico do texto cantado pela rainha da noite: a desafinada Florence Jenkins.

Só que, como dizia Fernando Pessoa, “há é pouca gente para dar por isso”.

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