Opinião: Ouvir a voz de alguém
No passado dia 4 de agosto, o Papa Francisco publicou uma belíssima carta sobre o papel da literatura na educação. O momento da publicação coincidiu com o decurso dos Jogos Olímpicos e com a discussão sobre a cerimónia de abertura, em que até o presidente turco Erdogan, paladino de tudo quanto há de mais sagrado, entendeu manifestar a sua solidariedade ao Papa por causa da “imoralidade cometida contra o mundo cristão”. Afirmou ainda que “a dignidade humana estava a ser esmagada sob o disfarce da liberdade de expressão e da tolerância, que se está a brincar com os valores religiosos e morais e que tal ofende tanto os muçulmanos quanto o mundo cristão.”
O Santo Padre, com a sua sábia bonomia, não fez qualquer comentário público, até agora. E, no entanto, qualquer indefetível de literatura conspiracionista (de Dumas e Dan Brown até ao extraordinário “Pêndulo de Foucault” de Umberto Eco) poderá interrogar-se sobre os motivos da ausência de resposta.
Há um primeiro nível de evidência, subtil e silenciosa: enquanto se desenrola o cacofónico debate de surdos sobre a olímpica cerimónia de abertura, o Papa prefere publicar um manso e denso texto sobre o “valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal“. Inspirando-se em Jorge Luís Borges, começa por afirmar: “Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela!”
Indo mais fundo no texto da carta, tropeça-se, a certa altura, numa reflexão sobre a relação de S. Paulo com a literatura grega, a propósito da sua visita a Atenas e dos seus discursos no Areópago: “Paulo recolhe as sementes da poesia pagã e, abandonando uma atitude anterior de profunda indignação, chega a reconhecer os atenienses como “os mais religiosos dos homens” e, naquelas páginas da literatura clássica deles, vê uma verdadeira «preparatio evangelica».”
Assim, em vez de um dedo em riste, Francisco contrapropõe o “poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia.”
Por tudo isto e muito mais, lida à luz da sua teoria da conspiração favorita ou, porventura mais sensatamente, dispensando tal lente hermenêutica, a “Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na educação” manifestamente continuará a ser de leitura proveitosa muito para além da “silly season” que nos deixa. Mas, melhor ainda do que ler sobre os proveitos da leitura, será “ultrapassar a obsessão dos ecrãs – e das venenosas, superficiais e violentas «fake news» –, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto.”