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Opinião: O rei dos instrumentos

22 de julho às 10 h01
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Na sua correspondência, o grande compositor Wolfgang Amadeus Mozart relata uma visita ao organeiro J.A. Stein em Augsburgo, em 1777: «Quando disse ao Sr. Stein que gostaria muito de tocar num dos seus órgãos, sendo apaixonado por este instrumento, ele ficou muito surpreendido e disse: “Como? Um homem como o senhor, um pianista admirável, quer tocar num instrumento sem doçura, sem expressão, sem piano, sem forte, que permanece sempre igual?” “Não importa”, repliquei. “Para os meus olhos e para os meus ouvidos o órgão é o rei dos instrumentos.”»

Qualquer pessoa que tenha entrado já numa igreja onde haja um destes instrumentos percebe perfeitamente que o órgão seja, para os olhos de quem o vê, o rei dos instrumentos. Nenhum outro atinge o mesmo nível de monumentalidade arquitetónica, que transforma as caixas de órgãos em objetos de extraordinário valor artístico (na região de Coimbra destaca-se a fantástica caixa com motivos orientais do órgão da Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra, bem como a extraordinária fachada dupla do órgão do Mosteiro de Lorvão). A opinião de Mozart não é sequer, a este nível de estética plástica, particularmente esclarecedora.

Muito mais interessante e digno de reflexão é o facto de o insigne compositor estender esta primazia do órgão também aos ouvidos. Ora, o primado do órgão provém da sua extraordinária flexibilidade tímbrica, que permite a inclusão de tubos com as mais variadas sonoridades. Utilizados em alternância ou nas mais variadas combinações, de acordo com as capacidades do organista enquanto orquestrador, os tubos do órgão cobrem assim um espectro sonoro que vai desde uma simples flauta às grandes capacidades sinfónicas. Assim, quando o grande órgão de Santa Cruz de Coimbra é reconstruído em 1726, D. Dionísio da Glória, cónego regrante deste Mosteiro, seu “Músico mestre de Capella e Organista”, orgulhosamente o declara o melhor da Península Ibérica, superior ao de Hamburgo, Pádua, Trento ou Palência, “confessando universalmente todos os que o ouvem e entendem ser este órgão um monstruo de harmonia”.

O órgão de tubos assumiu assim um papel preponderante ao longo dos últimos séculos, sobretudo na música litúrgica da Igreja latina, cume e padrão do próprio desenvolvimento de toda a música ocidental pelo menos até ao século XIX.

Com o necessário e benéfico processo de separação entre Igreja e Estado ocorrida a partir dos fins do século XVIII, o órgão beneficiou também do alargamento ao espaço secular, sobretudo nos países de mais forte educação, também musical, da população (e dos seus dirigentes).

A interação entre o espaço sacro e o espaço secular na música de órgão (e na música sacra em geral) representa atualmente um excelente modelo dos mútuos benefícios do diálogo entre as esferas espiritual e mundana. Num mundo desnorteado onde até a música contemporânea frequentemente apenas traduz horror e desespero, não é por acaso que muitos dos compositores mais influentes dos séculos XX e XXI (cite-se apenas a figura tutelar de Olivier Messiaen) provêm desse espaço sacro onde a música se torna a humilde serva da fé, da esperança e da caridade.

Autoria de:

Rui César Vilão

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