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Opinião: “O Mário capado”

14 de abril às 11h34
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Há mistérios que o senso comum não sabe explicar. Muitas vezes nem mesmo a ciência. O primeiro mistério do meu primo Mário é a sua alcunha. Porquê o “capado” se nunca foi submetido a nenhuma cirurgia para castração? O segundo mistério é que nunca pôde ter filhos biológicos. Tentou, fez exames médicos, mas nunca conseguiu. O único filho que teve foi adotado. Mas há outros mistérios por explicar.
O Mário era meu primo direito, nasceu precisamente um mês depois de mim. Batizados no mesmo dia e à mesma hora, os pais de um foram os padrinhos do outro.
As nossas casas ficavam frente a frente na mesma rua, podíamos falar de uma varanda para a outra. Crescemos juntos, partilhando tudo, mas sobretudo o convívio permanente entre a casa dele e a minha. Era filho único, passava mais tempo comigo e com os meus irmãos na nossa casa, o seu refúgio para fugir à solidão.
Aos sete anos entramos os dois na escola, a cem metros de casa. Quando toda a aldeia se conhece, a escola nunca é um ambiente estranho ou agreste. Estamos aí com os nossos irmãos, primos e amigos da rua e das brincadeiras próprias das crianças. A rua foi o nosso jardim de infância da socialização e a escola o ponto de encontro comum.
O Mário entrou feliz na escola e tudo corria dentro da normalidade entre nós, familiares e amigos, na sala e nos recreios, tínhamos laços anteriores à escola que nos uniam e protegiam. Mas a boa escola que tínhamos não era perfeita.
Um dia, não sei como nem porquê, o Mário levantou-se da sua carteira e foi direito à mesa do professor, que o olhou de frente, observando o seu andar, e exclamou com o seu vozeirão que chamou a atenção das 52 crianças na sala: oh rapaz, parece que estás capado!
Toda a turma riu à gargalhada, exceto o Mário, enxovalhado e magoado até às lágrimas. Eu, quase “irmão-gémeo”, não achei piada nenhuma e, vendo-o chorar, chorei com ele a sua mágoa. Foi o seu segundo baptismo, ali mesmo, e o segundo “padrinho” foi o próprio professor. O pior é que a história não acaba aqui. Na sala ao lado estavam 50 meninas e no recreio seguinte todas ouviram o episódio do Mário capado. Foi assim que ficou a ser conhecido em toda a aldeia.
A partir daqui o Mário foi outro. A sua autoconfiança ficou destruída, a sua autoimagem abalada. A criança alegre e feliz, sempre sorridente, tornou-se um menino triste, sempre dependente de lideranças alheias, muito particularmente de mim, o familiar e amigo mais próximo. Na minha ingenuidade infantil, eu senti que o Mário precisava da minha confiança e do meu apoio e a nossa ligação tornou-se ainda mais forte e continuou no liceu, em Castelo Branco. Só aqui, longe da aldeia e sem o estigma da alcunha, começou a libertar-se do seu complexo, que apesar de tudo terá deixado as suas marcas.
Naquele tempo, não havia turmas mistas, rapazes e raparigas eram educados separadamente. Foi assim na primária, continuou assim no liceu. Algumas das meninas da escola da aldeia vieram frequentar o mesmo liceu, mas não ficou qualquer vínculo. Cruzávamo-nos nos corredores do liceu ou nas ruas da cidade, mas ignorávamo-nos mutuamente. Nem sequer um cumprimento ou saudação.
No meu quarto ano fui integrado estranhamente, vá-se lá saber porquê, numa turma mista. Foi o início de uma longa aprendizagem no feminino, num tempo em que as escolas e as turmas começaram a ser geridas por uma percentagem crescente de mulheres e os homens começaram a desaparecer da profissão docente. Pude aprender longamente, por experiência vivida, que as desigualdades de género são um absurdo, e aprendi igualmente a lidar com raparigas e mulheres ao longo dos anos sem o menor constrangimento. O meu primo Mário, infelizmente, continuou sempre em turmas só de rapazes e aproximámo-nos da maioridade sem que alguma vez lhe tenha notado interesse ou aproximação ao sexo oposto. Para o meu primo, o feminino continuou tabu porque para ele era um mundo desconhecido.
Separámo-nos por esta altura, ele empregou-se em Lisboa e eu rumei a Coimbra. Encontrávamo-nos raramente e nunca dei conta de aproximações do Mário a encontros com mulheres. Até que um dia apareceu casado com uma colega de trabalho e concluí que o Mário não conquistou, mas foi conquistado. E fiquei feliz. Afinal o Mário tinha toda a vocação para ser pai e fez tudo para ser, mas, mistério, não pôde. Nunca conseguiu ter filhos biológicos, adotou, em desespero de causa, um menino que criou com toda a dedicação e carinho, mas voltou o fantasma da sua alcunha de infância. Que relação, que consequências poderá ter tido a humilhação da alcunha na incapacidade para procriar? E que relação com a sua morte precoce, com o filho adotivo ainda em fase de crescimento? Mistérios que subsistem e ainda pesam.
Hoje serão raros os docentes com esta mentalidade. Mas fica uma lição que não podemos esquecer: tudo o que o professor diga aos seus alunos tem de ser para construir pontes e não para as destruir. Uma “boca” infeliz pode ter consequências graves.

(Pode ler a opinião na edição impressa e digital)

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