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Opinião – Excesso de presente e usos da história

07 de setembro às 15h48
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Rui Bebiano - Historiador, investigador do CES e autor

O historiador François Hartog chamou “presentismo” a uma forma de encarar o tempo que desvaloriza o passado e despreza o futuro como dimensões da experiência humana, valorizando apenas o presente. Para quem a assume, esquece-se o que ficou para trás e apagam-se as utopias abertas ao futuro, visto como mera repetição da realidade atual, instalando-se a descrença na hipótese de mudanças substantivas. Resta então o presente como modo de orientação no tempo, tomando-se o anteriormente vivido como uma névoa ou uma sombra, e encarando-se o que virá sem réstia de esperança. Os “presentistas” habitam, pois, um eterno presente, que julgam o único lugar do possível. Uma perceção que não cai do céu, mas resulta da conjugação de cinco fatores.
O primeiro é a difusão, a partir dos anos oitenta do século XX, de teorias sobre o “Fim da História”, que consideraram extintas as grandes narrativas ideológicas que nos duzentos anos anteriores haviam encarado o trajeto humano como progressivo – J.-F. Lyotard chamou-lhes metanarrativas –, nada de novo havendo agora por que aguardar. O segundo integra as alterações nos programas escolares que tendem a desvalorizar o ensino da história, amplamente subalternizado, simplificado ou desprovido do indispensável aparato crítico. O terceiro é representado pelos processos, em curso nas sociedades de economia neoliberal e disseminados por uma comunicação social submetida aos grandes grupos económicos, que hipervalorizam o fácil, visível e imediato.
Os outros dois fatores são habitualmente menos referidos, mas nem por isso detêm menor relevância e impacto. O quarto tem lugar em espaços onde menos se acreditaria que pudesse ocorrer: em áreas do conhecimento académico, situadas mesmo nos domínios das humanidades e das ciências sociais, que nos últimos tempos tendem com frequência a cometer dois erros: um é uma simplificação excessiva da abordagem do passado, associada a leituras resumidas e «de mão aberta», muitas vezes unívocas, que o empobrecem; o outro é a vertigem, aplicada pelo lado negro das práticas “woke”, contrapondo a perspetivas parciais e datadas do passado, sempre passíveis de crítica, outras, de sinal oposto, embora não menos intransigentes e redutoras.
Já o quinto fator que alimenta a sobrevalorização do presente refere-se aos usos políticos da história, associados a objetivos circunstanciais e a perspetivas do momento. Este vínculo é tão antigo quanto a própria história – vindos da antiga Suméria, os fragmentos escritos que nos permitem conhecer os primeiros passos comprováveis do trajeto humano, impunham já a perspetiva de quem detinha o poder e a força – e foi legitimando sucessivas formas de manipulação do passado produzidas no âmbito de modalidades do pensamento dominante. No século passado isto ocorreu de forma particularmente metódica e imposta pela violência com os grandes sistemas políticos de orientação nacionalista e totalitária.
Este processo tem hoje adquirido novos contornos, determinados pelo uso consciente e empenhado de pedaços da história, interpretados de forma a legitimar os objetivos dos diversos populismos e também os dos regimes despóticos, empenhados em justificar os seus programas e, para o efeito, manipulando conscientemente a história e a memória de um modo faccioso, fantasioso ou mesmo caricatural. Basta olharmos o que acontece com o discurso da extrema-direita europeia ou com a retórica de regimes como os da Rússia e da Venezuela: neles, um passado convenientemente escolhido e moldado serve para formatar consciências, mobilizar adesões ou justificar escolhas perentórias.
Porém, em sociedades que se desejam progressivas, informadas e justas não é saudável, ou sequer possível, conviver o tempo todo com um passado silenciado ou manipulado, ou com a descrença no futuro. Sem um passado encarado de frente e um futuro pelo qual valha a pena lutar, o presente é um lugar ininteligível e de desalento, estagnado como um pântano ou sombrio como um beco. Como referiu Enzo Traverso, o uso crítico do tempo histórico tomado como um todo alimenta o direito dos povos ao saber e à esperança.

Autoria de:

Rui Bebiano

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