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Opinião: “Os sem nada”

14 de setembro às 13h04
2 comentário(s)

Os anos 2000 têm sido um tempo crepuscular para as democracias. Pelo férreo desmantelamento do Estado Social. Pelo eclipse da representação, capturada pelos mediadores partidários e pelos grupos de interesses. Pelo autogoverno e pela real insindicabilidade das magistraturas. Pelo colapso dos Parlamentos, cada vez mais câmaras de eco de executivos musculados. Pela feudalização do aparelho estadual, com entidades reguladoras, ditas independentes, a ocupar o espaço, as competências e os poderes das tradicionais direções gerais.
E tempo crepuscular, sobretudo, pela falência impune do direito internacional, como os casos Iraque, Ucrânia e Gaza suficientemente documentam, e pela redução dos direitos humanos a pura e vazia retórica.
O estatuto dos refugiados e dos migrantes é, a este propósito, tristemente exemplar.
Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo, há quase um século, registava a nova realidade dos refugiados como um dos efeitos mais perversos da emergência, após a Primeira Guerra Mundial, dos incensados Estados Nação.
Do dia para a noite massas humanas ficaram privadas da proteção jurídica imanente à pertença a uma comunidade política. Por o estatuto de humano, que antes antecedia o estatuto de cidadão, ter passado a ficar função da prévia aquisição do estatuto de cidadão. Só é humano, e só tem direito a ser tratado como humano, quem é cidadão de um Estado Nação. A titularidade de direitos humanos fundamentais fica, deste modo, condicionada à titularidade prévia do estatuto de cidadão estadual.
Dito de outro modo: o homem nu de cidadania, a persona em estado puro, fica privado da sua sua condição de humanidade, não sendo digno, logo, de qualquer proteção jurídica estadual.
As reflexões de Arendt, nos anos 50 do século XX, são mais atuais que nunca. E confirmadas por Zygmunt Bauman, para quem o refugiado tem, quando muito, um único direito: o de entrar num fortificado campo de refugiados. Mas não o de sair. Pois o refugiado não é cidadão. Logo não é titular de qualquer direito fundamental concedido aos nacionais. Logo, não tem o direito de ser, de viver e de ser tratado como um humano.
Há muitos modos de tratar os outros como ninguéns, como nadas.
E não precisamos de convocar os longínquos campos de refugiados em terras sempre ignotas, ainda que situadas nas democráticas democracias europeias.
Basta-nos passar os olhos pelas Odemiras nativas, ou pelas desditosas filas de “migrantes económicos” nas lojas da AIMA, reencarnação semântica do SEF.
Ou talvez seja preferível desviar o envergonhado olhar daqueles que, em última análise, são o nosso espelho:
Os sans papiers, os sem rosto, os sem nação, os sem pátria, os sem nada.

Pode ler a opinião na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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2 Comentários

  1. Maria Alice Gouveia diz:

    Parabéns Noémia, o Manuel expõe um tema actual, reportando ao que escreveu H Arendt em 1950. A população mundial a aumentar,as constantes migrações por uma vida melhor, as consequências nefastas disso, e interrogo: qual a solução? As soluções parecem mais complicadas que o problema. São ciclos pelos quais passa a Humanidade. Se assim é, podemos prever o próximo ciclo.

  2. Maria Pinto diz:

    Excelente texto. Concordo plenamente com esta análise e irei partilhá-la com os meus alunos em contexto de aula.

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