Opinião: Profissão médica: heróis (apenas) do momento
Os recentes acontecimentos no Europeu de Futebol onde foi determinante a ação das equipas médicas, na reanimação com sucesso de um jogador inanimado, trouxeram mais uma vez à ribalta a beleza e a importância da profissão, sobretudo em determinados momentos.
O problema, é que a memória é curta, e o esquecimento rápido.
Ainda há cerca de um ano, os profissionais de saúde, nos quais se inclui a classe médica, foram considerados heróis nacionais pela determinação e profissionalismo que com exerceram as suas funções durante a pandemia. Um ano depois, tudo passou para o domínio do esquecimento.
Os médicos já não são afinal os tais heróis para os doentes e seus familiares, já não representam aquela última barreira contra a morte numa pandemia que dizimou tantos. Foram totalmente esquecidos pelos responsáveis políticos, pelas administrações hospitalares e governantes. Os prémios prometidos ficaram nas gavetas dos ministérios, de onde nunca houve provavelmente intenção de os retirar. As prometidas actualizações nas carreiras profissionais são uma miragem e as novas contratações uma utopia.
São estes e outros factores que poderão estar na base do número cada vez mais elevado de médicos que é atingido pelo Síndrome de Burnout, ou mais vulgarmente conhecido pelo “esgotamento”.
Ainda que os números se tenham agravado muito com a pandemia, já em 2016 um estudo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos revelava que 41% destes profissionais de saúde apresentava sinais de exaustão emocional, 25% obteve pontuação elevada numa escala de depressão, 17% apresentava sinais de despersonalização (atitudes negativas, cinismo, insensibilidade e irritação) e um quarto afirmou não se sentir realizado profissionalmente. Esse estudo, revelava quase 20% dos médicos questionados trabalhava mais de 60 horas por semana, numa altura em que em diversos setores políticos se discute as 35 versus 40 horas de trabalho semanal…
Na verdade, a elevada responsabilidade, associada a elevados níveis de stress, a horários prolongados e a condições deficientes de trabalho constituem um perigoso cocktail capaz de levar ao extremo a exaustão fisica e psicológica. Todos devemos estar preocupados com este fenómeno, já que ele se pode refletir na qualidade da prática clínica e, portanto, nos resultados em saúde.
Tudo começa com um cansaço extremo que se vai instalando, por vezes sem o próprio médico se aperceber. Surge depois a desmotivação para tarefas mais simples, com um crescimento progressivo da ansiedade. No limite o raciocínio começa a falhar e começam-se a cometer erros e, a cada falhanço, o coração bate mais rápido. Facilmente se chega ao fim da linha: o burnout.
Não é fácil encontrar respostas certas para o problema mas existem vários caminhos que seguidos em conjunto poderão contribuir para minimizar o risco de entrada nesta espiral de descontrolo físico e psicológico.
A desburocratização da prática médica é um dos pontos importantes. Os esforços dispendidos com programas informáticos obsoletos e/ou ineficazes ou a existência de metodologias redundantes por indicação administrativa para execução de determinados atos clínicos condicionam aumento do cansaço e uma enorme frustração.
O aumento da humanização da prática médica, das relações laborais com colegas e outros profissionais de saúde fazem também parte da solução para a prevenção do problema. Ambientes de trabalho saudáveis geram pessoas felizes e satisfeitas.
A reorganização laboral, o estabelecimento de períodos de repouso que permitam uma recuperação eficaz após períodos prolongados de trabalho ou após elevados níveis de stress, poderão também fazer parte da equação solução.
Finalmente o reconhecimento da atividade profissional do médico por parte dos doentes e das suas famílias, dos administradores e governantes, aumentaria muito os níveis de realização e de satisfação profissional da classe médica.
Preferimos ser respeitados e reconhecidos como seres humanos de uma importante profissão do que ser olhados como heróis (apenas) do momento.