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Opinião: Das mós aos meteoritos

08 de novembro às 12h30
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Ao manso Jesus, conhecido dos seus contemporâneos pela sua pregação incessante da misericórdia divina e pelo seu “coração mole”, é atribuído um comentário que impressiona pela sua dureza: “Se alguém escandalizar algum destes pequeninos que creem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar.” A crueza é acentuada porque não se trata de uma mera metáfora: na época a morte por afogamento constituía uma das bárbaras versões da pena capital. A severidade deste aviso é amplificada quando se tem em conta que quem o profere não é um dos populistas de serviço, sempre prontos a invocar a pena máxima para qualquer deslize, mas sim Aquele que, mesmo no momento da morte, se prontificava a perdoar os seus algozes.
Esta passagem não pode deixar de ser invocada num momento em que a Igreja é novamente confrontada com o terrível crime de abuso sexual de crianças e jovens praticados por elementos do clero. Trata-se de um fenómeno que tem conhecido sucessivos e terríveis desenvolvimentos recentes e em que o horror e vergonha coletivos suscitados pelos crimes em si são acrescentados pela revelação de um fracasso institucional sistemático.
As origens sociológicas, criminológicas, destes delitos particularmente perversos são seguramente complexas e não se compadecem com explicações simplistas tantas vezes invocadas. São manifestação do falhanço de toda uma sociedade até há pouco demasiado tolerante e negligente em relação à gravidade deste tipo de crimes. Isso em nada minimiza, antes exponencia, as particulares responsabilidades da Igreja, e dentro dela dos seus responsáveis hierárquicos (os bispos e o Papa). A esse nível, este tristíssimo fenómeno expõe um duplo falhanço: não só a Igreja parece não conseguir passar para o mundo o que tem de melhor, como se deixa contaminar pelo que de pior o mundo tem, também através de uma cultura institucional demasiadas vezes mais preocupada com a reputação da instituição do que com as vítimas, conforme têm revelado relatórios sucessivos, dos Estados Unidos à Austrália, passando pelo Chile, Alemanha, Polónia, Irlanda e, agora, França.
É com o pontificado de Bento XVI que se dá, ao mais alto nível, uma abordagem sistemática para travar os aspetos mundanos e negligentes dessa cultura. O então cardeal Ratzinger conhecia de perto a realidade associada aos terríveis casos americanos ou dos Legionários de Cristo, bem como as falhas institucionais relacionadas, pelo que assim que ascendeu ao pontificado começou por dar o exemplo, trazendo as vítimas para o centro das atenções, através de encontros pessoais sistemáticos. Bento XVI desencadeou também uma profunda reforma que o seu sucessor tem promovido e amplificado, culminando na recente definição de regras claras para o procedimento nestes casos, incluindo a obrigatoriedade de todas as dioceses estabelecerem “um ou mais sistemas estáveis e de fácil acesso ao público para apresentação de relatos, se necessário através da instituição de um organismo eclesiástico próprio”. São estas comissões, centradas nas vítimas, que em Portugal começam a fazer o seu caminho, sobretudo depois da forte ação de sensibilização da comissão pontifícia para a proteção de menores, onde têm assento vítimas de abusos, bem como do estabelecimento de vigorosos mecanismos de responsabilização dos atos negligentes de gestão destes casos.
A fortíssima reação da sociedade e da Igreja em relação a estes crimes detestáveis representa também um sinal de esperança. Esta catarse coletiva pode e deve servir para construir um ambiente social e eclesial onde todas as crianças e jovens, com particular atenção aos mais vulneráveis, possam crescer e desenvolver-se de forma completa, harmoniosa e feliz.

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