Não há nada a desculpar, Fransérgio

Fransérgio é jogador de futebol. O médio brasileiro regressou recentemente a Portugal, onde contava ficar pelo menos até ao verão de 2026, altura em que terminaria o seu contrato com o Marítimo. No início desta semana, ouvimo-lo anunciar que rescindia, por mútuo acordo, com o clube madeirense e explicar as suas razões. Trata-se de um “motivo familiar”: quer regressar ao seu país para cuidar do filho Pedro, autista. O jogador tinha chegado a Portugal com a família, há quatro meses. Foram meses de alegria dentro do campo, mas preocupação em casa: Pedro regredia a olhos vistos. Com a mudança, acabou por interromper o acompanhamento que tinha no Brasil e, na ilha, não tinha condições de o prosseguir. “Para mim, o que faz sentido é a minha família”, disse na Sala de Imprensa do Estádio do Marítimo, vestido com uma camisola de apoio à causa autista, perante o presidente, o plantel, a equipa técnica e vários jornalistas.
Há uns anos, escrevi uma reportagem sobre pais de filhos autistas. O ângulo era esse mesmo: como é ter um filho autista, essa experiência de parentalidade. Não era sobre o autismo, nem sobre os autistas, mas sobre os pais que cuidam e amam sem limites um filho autista. Na altura, contactei algumas associações que me ajudaram a chegar a várias famílias. O meu primeiro choque foi perceber que grande parte destas famílias era composta apenas pela Mãe. A maioria dos pais tinham desaparecido pouco depois do diagnóstico e pouco ou nenhum contacto mantinham com os filhos, ficando a Mãe responsável por tudo: cuidar, criar, amar, sustentar, gerir dificuldades e celebrar alegrias.
Embora os tempos sejam outros, continua a haver um enorme desequilíbrio, entre pai e mãe, nos papéis da parentalidade. Claro que há diferenças geracionais: o mundo mudou. As mulheres têm um lugar no mercado de trabalho que obrigou as famílias a reinventarem-se: hoje, são muito poucas as mães que não trabalham também fora de casa, ou as avós que criam os netos. É verdade que os pais são cada vez mais comprometidos com o seu papel na vida, no crescimento e no desenvolvimento dos filhos – e também no cuidado quotidiano: nos banhos, nas refeições, nos trabalhos de casa, na história antes de ir dormir. Mas nós continuamos a achar que os homens que o fazem estão a ajudar a Mãe e não, simplesmente, a cumprir o seu papel de Pai.
Numa declaração muito tocante, o Fransérgio dizia que não é fácil chegar todos os dias a casa e “ver a mulher a chorar pelos cantos”. Isto não é um homem que quer ajudar, é um homem que quer ser. Ele não quer chegar a casa e consolar a Mãe. Ele quer chorar com ela. Porque ser Pai é como ser Mãe – e é isso mesmo: chorar, sorrir, limpar, brincar, repreender, fazer cócegas, vestir, alimentar, pegar ao colo, dar a mão, pôr a dormir. Não é chegar a casa ao fim do dia e perguntar como é que foi, é estar. E fazer. A Mãe do Pedro pôs a hipótese de regressar ao Brasil com os filhos e deixar o Pai a jogar em Portugal. “Mas eu não posso deixá-la voltar sozinha por uma coisa que é nossa”, justificou Fransérgio. Ele não vai desistir do Futebol. Vai continuar a tentar jogar, mas no Brasil, para estar perto da família e conseguir estabilizar o filho. A vida é isto: estarmos à altura do que nos acontece.
Segundo dados do Instituto da Segurança Social, em Portugal 85% dos cuidadores informais são mulheres. Estima-se que em mais de 70% das famílias portuguesas heterossexuais, as tarefas domésticas continuem a ser um exclusivo da mulher. E é fácil perceber – basta ir a uma reunião escolar de Encarregados de Educação – que os responsáveis pela Educação dos filhos continuam a ser, na sua maioria, as mães. São elas que cuidam, que tratam, que faltam ao trabalho quando os filhos ficam doentes, são elas que mais utilizam as baixas por assistência à família. E quando nasce um filho que precisa ainda mais de acompanhamento, são elas que abdicam das suas carreiras. Há uns dias, ouvimos este jogador pedir desculpa: “não consigo continuar a ajudar dentro de campo”. Mas não há nada a desculpar, Fransérgio. Dentro e fora do campo, só temos a agradecer, Pai.