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A praxe, o Meco e o “cadeirão” de todos os cursos

20 de abril às 10 h27
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Dez anos depois da tragédia do Meco, o Supremo Tribunal de Justiça ilibou a Universidade Lusófona e o Dux João Gouveia pela morte dos seis estudantes, recusando o pedido das famílias dos universitários: uma indemnização de cerca de 225 mil euros, por vítima. O Tribunal considerou que o apurado sobre a fatídica noite em que os estudantes, arrastados para o mar por uma onda, acabaram por se afogar é insuficiente para determinar a culpa dos réus. A decisão foi tomada por maioria (não por unanimidade), com a relatora inicial do acórdão a votar vencida, contrariamente aos seus outros dois colegas. Esta é a terceira vez que estas famílias veem chumbado o seu pedido, mas o advogado que as representa já garantiu que o processo seguirá, agora, com uma queixa contra Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
O episódio da praxe no Meco foi uma tragédia terrível, que tem como único ponto positivo ter havido, ao menos, um sobrevivente. Por muito que os tribunais ilibem o Dux, o peso que aquela noite pôs sobre as costas de João Gouveia é a pior condenação: a culpa não tem pena máxima, é uma sentença que nunca acaba, um fardo que se carrega para sempre. Nada vai trazer aqueles seis jovens de volta e não há dinheiro nenhum, por maior que seja o montante, capaz de ressarcir a perda de um filho. Qualquer pai ou mãe sabe isto. Não sei se há culpados efetivos da tragédia do Meco, nem se sentámos os réus certos na sala de audiência. Como acredito no Estado de Direito, acredito que o Tribunal decidiu de acordo com a Justiça – nem podia ser de outra forma. Mas mais importante do que passarmos mais dez anos a discutir este caso, dando espaço a que surjam novos casos, é garantir que esta tragédia não se repete.
Uma vez que todos os jovens envolvidos na praxe daquele fim-de-semana pertenciam ao órgão do Conselho Oficial da Praxe Académica, enquanto representantes de diferentes cursos da Universidade Lusófona, os juízes do Supremo consideraram que entre eles não havia uma relação de subjugação. No entanto, todos sabemos que o Dux é, na hierarquia da praxe, a suprema figura de poder. Também não ficou provado que João Gouveia tenha impulsionado ou liderado a exposição ao perigo, que tivesse uma relação de poder sobre os outros ou que as vítimas não estivessem capazes de tomar decisões responsáveis e autónomas, pelo que para o Tribunal o seu comportamento foi igual ao dos outros jovens – ele só teve mais sorte. Talvez. Mas nós podemos tentar mudar a sorte, para o futuro ser diferente.
Está mais do que na hora de assumirmos que a praxe académica é um terreno de risco, que não poucas vezes coloca em causa a segurança e a liberdade individual. Todos sabemos que a praxe é, tendencialmente, uma manifestação de bullying, com ações de coação física e psicológica, ofensa, discriminação e assédio. Já sei: nem sempre, nem toda a praxe. Certo, mas esses casos são a exceção. Têm de ser a exceção, quando falamos num conjunto de rituais regido por relações de poder e baseado numa hierarquia que determina que os estudantes com menos matrículas devem obediência aos estudantes com mais matrículas. Quando falamos de jovens – imaturos, eufóricos e tomados por uma ideia de imortalidade que já todos vivemos – e de contextos muitas vezes marcados pelo consumo excessivo de álcool e drogas. Quando há um código de conduta, ainda que subtil e implícito, que determina que X se submeta a Y para ser aceite no grupo. Quando estamos no campo da submissão, nunca sabemos quão consciente é uma tomada de decisão.
Talvez nada possa ser feito para minimizar a dor, a frustração e o sentimento de injustiça das famílias dos estudantes que morreram naquele dia. Mas tem de ser possível fazer alguma coisa para impedir que mais famílias passem pelo mesmo. É preciso que as instituições de ensino superior e a sua tutela definam, de uma vez por todas, limites claros em relação às praxes e à defesa dos seus estudantes. Não basta as universidades proibirem a praxe dentro dos seus recintos ou continuarem a ignorar a existência de trupes e conselhos de praxe, como se o assunto não lhes dissesse respeito. Diz. Principalmente porque a Universidade serve, antes de qualquer outra coisa, para formar cidadãos. E cidadãos inteiros não podem senão opor-se a qualquer tipo de violência ou abuso de poder. Esta é uma questão de segurança mas é também uma questão de cidadania e de ética – de assumirmos, claramente, o projeto que queremos para o mundo. Esse é o “cadeirão” de todos os cursos e o quadro de honra onde deviam caber todos os universitários.

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