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A incapacidade de ceder

22 de março às 13h48
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Diogo Cabrita - médico

Eu deixo, tu partilhas, eu permito. Tu deixas-me. Tu abres mão. Tolerando, abrimos espaço consensual. Na realidade esta linha é complexa e tem uma fronteira ténue. Se cedemos demais sentimos o fel da derrota. Se não negociarmos, o acordo não existe. A vida tem esta necessidade de encontrarmos fronteiras espessas, que permitam pisar o risco sem ficar de fora.
As linhas vermelhas de alguns são muito finas e irrequietas. O linguajar do negociador pode impedir o consenso. É o modo como se diz. Uma grande percentagem de litigâncias vem desta interpretação do que se fala. Uns dizem rude o que a outros parece rouquidão. Muitos criticam a tonalidade, a falta de sorriso, a ausência de cumprimento, a aspereza, ou a excessiva frontalidade. Muitos desconhecem as regras do trato à luz da educação antiga. Tutear pode ser ofensivo. Por tudo isto, a tolerância é um processo a que se chega por um percurso tormentoso. Envolve o que se diz, o modo como se diz, o que se aceita ser discutido, os limites de ambos para o encontro de ideias.
A incapacidade de ceder constrói as batalhas do quotidiano e as guerras do mundo. Gaza é um produto de mais de 50 anos de ódios e invasões. Há divórcios com grau de violência próximo da guerra. Há concursos que descobrem ódios para a vida. Ceder tem as barreiras da fé, as crenças, as convicções, as certezas de cada um como territórios intocáveis. E há muitos espaços indiscutíveis na vida. A religião é um lugar de intolerância para os que se aprofundam nos dogmas e nos castigos. A humanização animal é uma postura de fé. O fanatismo ideológico é um terreno lavrado de embondeiros.
Ceder de uma certeza, ou silenciar a divergência pode ser uma bênção. Para muitos representa uma covardia. Acreditar sem permitir contraditório é válido para mim e para ti. Tolerância é válida para mim e para ti. A dificuldade é saber onde posso deixar de ceder. Nas famílias geralmente a tolerância maior está para com as crianças. No entanto, esta opção contradiz a educação, impedindo o peso da frustração no crescimento. Perder é importante. Não conseguir é aprendizagem. No consenso, realmente, todos têm de perder, e depois viver com a parte que ganham mais felizes do que a carpir o que se perde.
-Mas há coisas indiscutíveis!
Pois bem, não há! O facto de se poder falar de tudo transporta para a dimensão de aprender e visualizar outras interpretações daquilo que tínhamos por garantido. Custa? – sim!
Mas no consenso não temos de abdicar de tudo. No casamento não temos de silenciar tudo. Por vezes as guerras desconstroem os limites e abrem novas fronteiras. Espera-se que aconteça na África do futuro. É forçoso que interiorize que o consenso tem por antónimo a alternância. A alternância é um espaço de experiência das vertentes do real. Seria perfeito experimentar e escolher, mas lá está a tolerância limitada, que entende que se deve escolher e depois sofrer do custo da oportunidade.

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