Opinião: Um caminho aberto para o futuro

As últimas legislativas trouxeram alguns resultados poucos animadores para os amantes da Democracia mas também alguns sinais de esperança.
Um deles é a entrada de Anabela Rodrigues no Parlamento Europeu. A ativista, de 47 anos, vai substituir Marisa Matias – que passa a estar, agora, na Assembleia da República –, tornando-se na primeira mulher negra portuguesa eurodeputada. Numa altura em que as políticas de imigração e antirracistas são cada vez mais ameaçadas pela força crescente da extrema-direita, ver Anabela Rodrigues na Europa é um sinal de esperança. Ideologias à parte, a luta contra o racismo, a xenofobia e o classismo é a luta da fraternidade e da dignidade humana – e essa é a luta de todos.
Anabela Rodrigues é uma ativista afrodescendente. E pelo menos até às próximas eleições europeias, que decorrerão em Junho, é eurodeputada do Bloco de Esquerda (BE) em Bruxelas. Anabela é uma lisboeta, filha de pais cabo-verdianos, que cresceu na Cova da Moura, na Amadora, onde continua a viver. Foi aqui – numa das maiores e mais antigas geografias da imigração da área metropolitana de Lisboa – que, cedo, tomou consciência dos problemas sociais da sua comunidade, intimamente ligados às dificuldades que enfrenta quem chega a Portugal para recomeçar uma nova vida, desde logo no acesso à cidadania portuguesa. É fruto da sua experiência pessoal e da consciência da sua história – a Mãe, Maria, veio para o país na década de 70, onde trabalhou a vida inteira como empregada doméstica e de limpezas – que Anabela chega a dirigente da Associação para a Defesa dos Direitos dos Imigrantes Solim, envolvendo-se também no movimento “Por outra Lei da Nacionalidade”, que reivindicava a atribuição da nacionalidade portuguesa a todos os que nascem em Portugal.
Anabela já tinha concorrido a duas eleições europeias, como independente, e ingressou as listas do BE nas últimas legislativas, pelo círculo de Lisboa. Não foi eleita para a Assembleia da República mas, por substituição, chega agora ao Parlamento Europeu. E eu espero que, com ela, chegue também ao Parlamento Europeu uma voz própria de combate ao racismo. Uma voz que me represente também como filha da emigração mas, acima de tudo, como cidadã portuguesa e europeia que deseja um espaço europeu onde sejam bem-vindos todos os que vierem por bem.
O assento parlamentar de Anabela Rodrigues faz do Portugal Europeu um lugar melhor. Não sabemos o que ela irá fazer, daqui para a frente, mas a sua chegada a Bruxelas já é uma melhoria. Ter uma mulher com este perfil como eurodeputada é algo que honra o projeto europeu e algo que nos devia encher de orgulho. É um pequeno sinal de que há um futuro mais democrático, igualitário e feliz à nossa espera, ainda que tenhamos de atravessar vales de sombras até ele. O facto de Anabela se disponibilizar para pôr a sua história ao serviço das soluções é um mais um passo em direção a um futuro melhor – algo que lhe ficaremos a dever, para além do respeito que é devido a cada ser humano, nas suas diferenças e na sua unicidade. Não, o facto de termos, pela primeira vez, uma mulher negra portuguesa no Parlamento Europeu não é um detalhe, nem um pormenor irrelevante. Às vezes, é preciso que as dores sejam contadas na primeira pessoa, que as injustiças e as dificuldades sejam relatadas por quem as sentiu na pele. É importante que a tomada de decisão envolva as vítimas – e elas têm todo o direito, e até o dever para com a sua história, de participar na construção da mudança.
Numa altura em que o mundo se mostra cada vez mais aberto a um discurso anti-imigração, e as fronteiras são cada vez mais fechadas ao acolhimento, à diferença e à diversidade, sentar Anabela Rodrigues no Parlamento Europeu tem algo de algo simbólico e comovente, algo que tem a ver com a nossa representatividade enquanto país. Depois de séculos de escravatura e décadas de colonialismo, e no ano em que a Revolução dos Cravos celebra 50 anos, é uma emoção ver o caminho que Anabela Rodrigues fez entre o colo da Mãe Maria, na Cova da Moura, e o assento no Parlamento Europeu, em Bruxelas: um caminho feito com a sua história – a pessoal e a ancestral: de mulher, de negra, de imigrante. Um caminho aberto para o futuro.