Opinião: Num obituário imaginário
Na campa coberta de musgo do alto de S. João percebe-se em relevo o nome Manuel Idalécio Gouveia. O Cemitério de Lisboa, altaneiro e enorme, entre ruas desertas, com obras aqui e ali, com turistas que observam espantados os mausoléus, e as gavetas por trás do muro principal. Os portugueses deixam flores, os turistas guardarão a memória e perpetuarão as imagens de um espaço de reflexão e dor. Enterram-se menos pessoas agora. Incineram-se e guardam-se as cinzas, e outros libertam-nas em funerais criativos, passeios exóticos, subtilezas sofisticadas e com idiossincrasias inexplicáveis. Manuel Idalécio Gouveia tem descansado o seu eterno repouso sem sobressaltos. Não há festas de estudantes, não há praxes académicas, não há festivais de música, não se lhe estende a sardinhada do Sto António. No alto de S. João os moradores não criticam o condomínio, não discutem as extremas, não se aborrecem com inundações. Nunca alguém protestou do pequeno-almoço ou da cama menos confortável. Manuel Idalécio Gouveia adora lá viver.
A morte entretanto evoluiu. Estendeu-se o luto à perda dos animais também, e os mausoléus e as campas rasas e os gavetões dos animais de companhia não tardarão. Contra todas as previsibilidades de outrora surgirão no alto de S. João e Conchada, os donos ricos que querem construir as suas homenagens ao Zorro, ao Bobby, ao Faneca e outros amores intemporais.
Manuel Idalécio Gouveia sabe que o Zorro não vai ladrar, o Faneca não se lhe enroscará nas pernas, mas anda aborrecido com a situação. Não lhe chegarão carraças nem pulgas, não lhe morderão novos vermes, mas acha estranho ficar o Bobby paredes meias com os antigos combatentes. Parece-lhe excessivo que um enorme Tejo (há muitos cães com nome de rio) faça sombra à campa da sua avó. Mas não há dúvida que desde a morte do Idalécio mais ninguém se lembrou da Eufrigínia Barroso Madeira. Os animais de companhia pode ser que lhe alegrem o repouso eterno. Vai crescendo a lógica da humanização e portanto os obituários da funerária Barroca, da Servilusa em breve acrescentarão que faleceu o Tornado, cavalo inesquecível. A família enlutada informa do momento de memória de Lenta, a tartaruga que com os Galvão viveu vinte anos. Com consternação, a mãe e os irmãos de Lobo rezam missa campal no dia 15. Lobo é o cão dos Loureiro da Mealhada. Mãe é a dona, que o não pariu, mas amou de modo profundo.
Os obituários acabarão por realizar esta adaptação humanista dos animais. Nas redes sociais eles já surgem com frequência neste registo contemporâneo que Manuel Idalécio Gouveia nunca teve. Ele morreu sozinho, encontrado quinze dias depois da morte, e fedia. Estava a ser comido por ratos e outros bichinhos que o perpetuam na sua alimentação. A família nunca apareceu a pagar a sepultura. Estiveram no notário a dividir os bens e rezaram-lhe a missa um ano depois. A animalidade humana cresce com a humanização animal disse o Manuel Idalécio Gouveia, tombado no chão, ao terceiro dia de tentar falar com os filhos. Morreu depois.
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