Opinião: Fogo e Desigualdades: quando uns sucumbem para outros prosperarem
Desta cidade de onde vos falo, o céu voltou a ser azul. A chuva vem dar tréguas aos pulmões do país. Nunca tinha assistido ao colapso de uma cidade por causa dos fogos: o ar tornou-se irrespirável, a poluição visível, os corpos adoeceram e a angústia instalou-se.
Lá longe estão as florestas a arder. Quase parece um cenário de um filme, algo distante. E que se repete em tantas outras: as cidades, com as suas florestas de cimento, afinal também ardem. “Fiquem em casa”, vimos renovada a solução da pandemia, mas os “heróis” agora são os bombeiros, que em Portugal são maioritariamente voluntários e arriscam as suas vidas pelas dos outros.
A angústia do fogo deixa marcas profundas não só no território que devora a um ritmo alucinante, mas também nas nossas vidas. O combate às chamas é um combate corpo a corpo, com mais ou menos apetrechos e uma certeza: o fogo não afeta a todos de forma igual. Os mais frágeis, sejam eles humanos ou não humanos, são sempre os primeiros a cair.
À medida que se discute a tragédia, torna-se evidente a pluralidade de visões que ouvimos nas últimas semanas, alimentada por diferentes interesses e posições. Enquanto uns lamentam a perda da floresta e outros dos bens materiais, a maior perda permanece silenciosa, invisível para muitos, embora grite no silêncio. São as árvores, os animais, o ar que respiramos, a água que já escasseia, entre tantas invisibilidades pelas quais não expressamos qualquer empatia. A perda é irreparável não apenas para o presente, mas também para as gerações futuras.
Os incêndios são uma consequência direta das alterações climáticas, da vulnerabilidade do nosso país, dizem-nos. É verdade, também são. Mas como podemos aceitar a naturalização dessa tragédia? Não se trata apenas de um fenómeno climático, mas de uma escolha política e social. A precariedade das políticas de proteção ambiental, as falhas nas práticas de gestão territorial, e, claro, a indústria do fogo, que vê nas chamas uma oportunidade de lucro.
A história de um jovem que perdeu a vida tentando salvar o património do seu empregador é um retrato cru de como o capital aliena a vida humana. Para quê salvar máquinas e bens materiais quando as vidas humanas e não humanas estão em risco? Quem beneficia quando o fogo destrói tudo à sua volta? Aqueles que vivem do fogo, dos contratos milionários para o combater e daqueles que lucram com a reconstrução. A desigualdade estende-se até às cinzas.
As alterações climáticas são inegáveis, e, sem políticas que antecipem, adaptem e mitiguem os seus efeitos, estamos condenados a ver esta tragédia repetir-se ano após ano. É por isso que precisamos de questionar a forma como nos relacionamos uns com os outros e com a natureza. A desproteção da natureza reflete-se na desproteção dos mais vulneráveis na sociedade e na vida. A nossa organização social, centrada no lucro, no funcionamento da economia, ignora os alertas.
Os processos em curso parecem empenhados em alienar-nos do que realmente importa. Mas nós, enquanto sociedade, porém, temos uma escolha. Podemos continuar a apagar fogos ou podemos começar a prevenir as chamas — não apenas no sentido literal, mas também nas profundas desigualdades que alimentam estas tragédias. O fogo pode estar mais controlado hoje, mas até que ponto estamos preparados para enfrentar as causas que o alimentam?