Opinião: Cidades invisíveis
Ao abrigo das páginas célebres de Italo Calvino nesse livro inclassificável intitulado «Cidades Invisíveis», decorreu em Coimbra, entre 26 e 29 de maio, o I Encontro Literário Internacional.
O Encontro nasceu na Candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura 2027. Talvez valha a pena sublinhar, a propósito, dois ou três aspetos.
O primeiro prende-se, mais do que com uma relação íntima da literatura com a cidade, com o facto de Coimbra, na sua realidade material e no seu imaginário, dever muito ao que os poetas e os romancistas foram produzindo, a seu respeito, ao longo de muito tempo até este século XXI: porque, neste particular, a força criativa de Coimbra não se extinguiu, como os mais atentos poderão testemunhar.
O programa implícito do Encontro Literário Internacional está aqui: aprofundar em todos os sentidos a experiência literária da Cidade. É uma experiência suficientemente rica para que se tenha tornado possível falar de cidades-personagens-literárias: Lisboa de Fernando Pessoa, Praga de Franz Kafka ou Dublin de James Joyce são ao mesmo tempo cidades reais e cidades imaginárias. O que a grande literatura faz é ligar, em permanência e em reciprocidade, as cidades reais e as cidades imaginárias. Neste sentido, a obra literária contém aspetos da cidade real e cria uma outra cidade, que transfigura a cidade real sem a contradizer. Para a situação concreta de Coimbra, vários séculos de literatura testemunham exuberantemente esta ligação transfiguradora. Por isso, foi nosso entendimento – de acordo, aliás, com sugestões de muitas personalidades que ouvimos a propósito – que a cidade de Coimbra reunia condições históricas, culturais e simbólicas adequadas para centrar um evento literário na relação entre a cidade e a literatura.
Não se trata de organizar mais um encontro literário porque outros já o fazem. Trata-se de afirmar a pertinência artística, cultural e política de um tema e de uma estratégia, de poderosas virtualidades europeias.
Em 2021, Coimbra recebeu a cidade de Santiago de Compostela. Foi um Encontro experimental a vários títulos. Importa sublinhar a importância e a qualidade dos escritores que quiseram estar connosco: Elias Torres Feijó é uma figura central das movimentações da lusofonia, grande conhecedor da literatura portuguesa e já foi Presidente da Associação Internacional de Lusitanistas; Cesáreo Sánchez Iglesias, escritor e poeta, é o atual Presidente da Associação de Escritoras e Escritores de Língua Galega, depois de um longo período profissionalmente dedicado às questões do urbanismo e do património cultural; Teresa Moure e Susana Arins são escritoras com participação relevante nas movimentações feministas da Galiza; e não esquecemos Carlos Quiroga, que, além da intervenção destacada, fez uma residência artística em Coimbra, na casa histórica de João José Cochofel. Estes escritores foram acolhidos por confrades portugueses, igualmente destacados: o Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, José Manuel Mendes; o escritor e poeta Vasco Pereira da Costa, autor, entre outras obras, de um romance fundamental sobre a ambiência coimbrã da crise académica de 1969; Marlene Ferraz, ficcionista já vencedora do Prémio Miguel Torga e Francisco Duarte Mangas, poeta e ficcionista e também Presidente da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Nos seus quarenta anos de vida literária, Teolinda Gersão manteve um diálogo fascinante com Cristina Robalo-Cordeiro e foi homenageada pela Câmara Municipal de Coimbra, que lhe outorgou a Medalha de Mérito Cultural/Ouro. Finalmente, deve sublinhar-se a inscrição do Encontro na malha urbana da cidade, em alguns dos lugares relevantes: no Convento de São Francisco, na Quinta das Lágrimas, na Casa da Escrita (onde decorreu uma sessão de leitura pela SESLA) e no Grémio Operário, numa deambulação que a Cooperativa de Bonifrates acentuou, no recital itinerante “Re-Habitar”.
Este título poderia ser também o tema ou o mote ou a identificação para o Encontro que, iniciado em 2021, vai prosseguir: é (também) com a literatura, que os homens e as mulheres, cidadãs e cidadãos, habitam a cidade, as cidades. É sobretudo pela e na literatura que re-habitam: habitam de novo, não no sentido de repetirem a experiência, mas no sentido a reinventar.