Opinião: As geografias e as contraordenações geográficas de Mr. Bean
Mr. Bean vive no norte de Londres, num pequeno apartamento de um primeiro andar em Highbury, a cerca de sete quilómetros do centro da capital inglesa.
À primeira vista, este vigilante da National Gallery não é um vizinho que se deseje perto de casa. Pode-se mesmo afirmar que
Mr. Bean será um agitador da ordem pública.
Mr. Bean é conhecido por perturbar restaurantes, salas de espera e consultórios médicos, barbearias, piscinas e casas de banho públicas, festas e exposições, lojas comerciais, lavandarias e bancos de jardim, ateliers de pintura, aulas de judo e campos de golfe.
Nas ruas da Grande Londres, circula com um pequeno Mini de cor verde amarelado, com um capot preto. Algumas vezes conduz em contramão. Outras serpenteia o carro na faixa de rodagem, interrompendo a fluidez do trânsito. Outras ainda (um
Mr. Bean “territorial”), desvia automóveis estacionados para depois lhes ocupar o espaço. Perante um sinal vermelho que o obrigaria a parar, sai do seu Mini e continua a marcha, a pé, empurrando o veículo.
Ainda com o seu Mini, entra nos parques de estacionamento e tenta sair sem pagar. A relação com os botões e os dispositivos mecânicos não é fácil, sejam estes uma cancela automática, uma máquina de barbear ou a cadeira de um dentista.
Mr. Bean também sai de Londres, por vezes aparece em hotéis, outras desloca-se em transportes públicos, numa ocasião viajou de férias para o sul de França e assistiu ao Festival de Cannes.
Para evitar responsabilidades e escapar ao controlo, Mr. Bean pratica o exercício da dissimulação e da opacidade geográfica. No corredor de uma unidade hoteleira, desloca-se debaixo de um tapete. Na porta de entrada para a estação de um transporte público, para não pagar bilhete e enganar o funcionário, tenta atravessar aquele limite dentro de um saco. Na cabine de um comboio, para contrariar a companhia desagradável de um companheiro de viagem ruidoso, esconde-se debaixo do seu próprio casaco.
Este Mr. Bean antissocial é pouco paciente com crianças e idosos, as primeiras irritam-no, os segundos são lentos e atrasam-lhe o movimento, sobretudo quando se descem escadas apertadas.
Desconfiado que possa ser roubado, retira o volante do seu Mini sempre que o estaciona na rua e protege-o com uma fechadura reforçada e um cadeado.
É verdade, pouca razões se tem para gostar deste anti-herói, um solitário numa cidade demasiado grande, um apaixonado pelas suas únicas companhias- Teddy, um urso de peluche; e um pato amarelo, de borracha, sem nome.
Muito para além da oposição ordem/desordem, talvez Mr. Bean possa ser algo mais. Talvez possamos olhar para Mr. Bean como um provocador e um desafiador das convenções, das normas e das regras esquemáticas que vão apertando e simplificando uma sociedade monolítica demasiado retilínea, mimética e sem margem para a diferença. Talvez Mr. Bean se oponha ao Excel que afunila e desvaloriza o pensamento.
Por isso, apesar das penalizações e dos olhares reprovadores de todos os outros, é provável que Mr. Bean represente ao mesmo tempo um alerta e uma esperança. Quiçá se consiga viver num outro tempo e com uma outra cronologia e se possa mergulhar o despertador na água sempre que nos interrompe o sono matinal.
O Mr. Bean trapaceiro e competitivo. O Mr. Bean que, numa feira, para ganhar um prémio, desliga discretamente a ficha elétrica de uma máquina. Este Mr. Bean pode ser a outra face de um mundo que se vai tornando plano, desintessante e árido, tal como anunciado pelo premonitório “Monocultures of the Mind”, publicado por Vandana Shiva em 1993.
Obs. Texto escrito na mesa de um restaurante, no Porto. Momentos antes, e com alguma urgência, entrei no Mercado do Bolhão à procura de um ponto de utilização pública para voltar a dar vida a um telemóvel sem energia e do qual precisava retirar um documento. Nada se encontrou, a não ser uma máquina multibanco, …com a ficha elétrica acessível…. Mr. Bean não hesitaria – e se, também aqui discretamente, se desligasse o terminal bancário para carregar a bateria do telemóvel? Bastariam 10 ou 15 minutos sem levantamento de notas ou transações financeiras ….e o mundo não acabaria por isso.