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Opinião: Alta Velocidade – desinformação e erros estratégicos

04 de setembro às 11h28
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A linha ferroviária de alta velocidade (LAV) é o único grande investimento público que reúne consenso em Portugal, tanto entre os partidos políticos como entre a população. A LAV Porto-Lisboa permitirá a consolidação da fachada atlântica, onde se concentra a maioria da população e da atividade económica, fundamental para a competitividade de Portugal.

Estrategicamente, iniciar a alta velocidade por esta linha, em vez da ligação a Espanha, foi uma boa decisão. No entanto, à “boa maneira portuguesa”, a desinformação e a introdução de alterações poderão resultar em erros graves.

O projeto da LAV Porto-Lisboa, com estações intermédias em Gaia, Aveiro, Coimbra e Leiria, sofreu já uma alteração significativa, que o desvirtua grosseiramente. A localização do novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete implica um desvio bizarro de 70 km. Vinda de Norte, ao chegar a Alenquer/Carregado, a LAV terá de bifurcar: uma linha seguirá para Lisboa, como inicialmente previsto, e uma nova linha atravessará o Rio Tejo para servir o aeroporto, voltando a atravessá-lo para entrar em Lisboa. Um “anel” totalmente desnecessário caso o aeroporto fosse localizado a norte do Tejo. No artigo de 12 de Junho (disponível online em As Beiras) abordei detalhadamente esta decisão e as suas implicações.

Além disso, a localização do aeroporto na margem sul veio dar força a outros dois pedidos de grandes investimentos: 1 ) a construção da Terceira Travessia do Tejo (TTT), uma nova ponte entre Lisboa e a Península de Setúbal, e 2 ) a antecipação da LAV Lisboa-Madrid via corredor internacional sul. Quais são os problemas?
A TTT, na versão rodoferroviária avançada, é um projeto megalómano, orçamentado entre 1 a 2 mil milhões de euros, cuja necessidade estratégica não está devidamente demonstrada. Parece servir primordialmente para ajudar a justificar os restantes investimentos no Campo de Tiro de Alcochete e na LAV Lisboa-Madrid via Sul.

A rede transeuropeia de transportes (TEN-T) prevê duas opções de ligação Lisboa-Madrid (e à Europa). Uma pelo corredor internacional norte (através da Região Centro e Salamanca) e outra pelo corredor internacional sul (através do Alentejo e Extremadura espanhola).

Que os portugueses não se iludam! A LAV Lisboa-Madrid agora em discussão é a do corredor sul. A priorização desta ligação por sul em detrimento da do corredor norte será um dos maiores erros estratégicos de Portugal em várias décadas.
Analisemos as duas opções. Madrid está localizado bem a norte de Lisboa, numa latitude semelhante à de Aveiro ou Guarda.

Pelo corredor sul, a linha sairá de Lisboa rumo a Évora, atravessará a fronteira em Elvas, e percorrerá todo o restante caminho para Madrid já em Espanha. Nesta opção, os benefícios que Portugal poderá retirar da ligação Lisboa-Madrid estendem-se apenas a Évora, enquanto que em Espanha toda a região da Extremadura (ou seja, Badajoz, Mérida, Cáceres, e Plasencia) e a cidade de Toledo sairão beneficiadas. Por outro lado, o corredor norte, que consiste numa nova linha Aveiro-Viseu-Guarda-Salamanca-Medina del Campo/Valladolid, a partir do seu entroncamento com a LAV Porto-Lisboa, na zona de Aveiro/Albergaria-a-Velha, trará inúmeros benefícios para Portugal.

Primeiro, um serviço Lisboa-Madrid via corredor norte incluirá Leiria, Coimbra, Aveiro, Viseu e Guarda, beneficiando mais regiões do que o corredor sul, que apenas abrange Évora.

Segundo, o corredor norte é o único que serve tanto a ligação Lisboa-Madrid como a Porto-Madrid. Ou seja, serve simultaneamente as duas áreas metropolitanas e a Região Centro, ao contrário do corredor sul, que serve apenas Lisboa e parte do Alentejo.

Terceiro, o corredor norte é o único que não coloca Lisboa na dependência de Madrid para chegar à Europa. A linha Aveiro-Viseu-Guarda-Salamanca-Medina del Campo/Valladolid bifurca em Medina del Campo, permitindo que os comboios sigam diretamente para a Europa (via Valladolid) ou para Madrid (via Segovia). Pelo corredor sul, qualquer viagem de Lisboa para a Europa terá forçosamente que parar em Madrid.

Em suma, a construção conjunta do novo aeroporto na margem sul do Tejo, da TTT, e da ligação Lisboa-Madrid pelo corredor sul, não é a que melhor serve o interesse nacional.

Cada um destes investimentos parece servir para reforçar a necessidade dos outros dois, numa visão megalómana, possivelmente insustentável para um país como Portugal, onde, entre vários problemas estruturais, crianças do Algarve nascem em Lisboa, as de Torres Vedras nascem em Coimbra e as de Leiria no Porto; onde, todos os anos, milhares de alunos não têm aulas por falta de professores; e onde, há poucos dias, a Secretaria do Ministério da Administração Interna (que tutela a polícia!) foi assaltada e, pasme-se, o edifício não tinha alarmes e as câmaras de vigilância estavam avariadas!

As grandes infraestruturas de transporte custam milhares de milhões de euros, com uma parte significativa financiada pelos nossos impostos, e são utilizadas durante décadas. Por isso, as decisões têm de ser estratégicas, com as prioridades bem definidas para o futuro do país. É essencial que a sociedade esteja informada e compreenda o que está em causa.

Se a construção do novo aeroporto a sul do Tejo parece um erro, a “secundarização” da LAV do corredor norte poderá somar um erro ainda maior. Após a LAV Porto-Lisboa, a prioridade deve ser a LAV Aveiro-Viseu-Guarda-Salamanca-Medina del Campo/Valladolid.

Autoria de:

João Bigotte

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