Opinião: A Gaivota

A crónica de hoje poderia muito bem começar como muitas historietas que nos contavam ou que contamos em tempos que já lá vão: era uma vez…
O que hoje acrescento às reticências é “uma gaivota”.
Fica então assim: “ERA UMA VEZ UMA GAIVOTA” que faz, fez ou faria os encantos e a admiração de quem a viu ou conheceu.
Todos os anos, quando a época reprodutora dá sinal, ela aí está. Como o hábito deve fazer o monge, escolheu a Praia de Quiaios para sua habitação em época de veraneio e ocupa invariavelmente um candeeiro de iluminação pública – sempre o mesmo- esperando a sua vez de ter acesso ao peixe que a sua amiga, residente na casa ao lado desta fonte de iluminação (porque não chamar-lhe cuidadora?), lhe põe na mesa, que o mesmo é dizer no passeio que bordeja candeeiro e casa.
Apreciadora e devoradora de carapaus mínimos e de sardinhas que nada ficam a dever ao tamanho traga com gosto o que mão humana lhe fornece, poupando-lhe trabalho de procurar alimentos.
Certinha, sabe o que deve fazer e a que horas. E, se a cuidadora não está em casa, aguarda pacientemente que ela chegue, acompanhando-a em voo sobre o velho Mercedes branco até a ver dirigir-se a casa, sinal de que vem aí alimento. Todos os anos estes rituais se repetem.
Estamos perante um caso curioso de persistência, de amizade a quem a trata bem, de reconhecimento.
Mas esta gaivota não fica por aqui. Ensinou a filhota a seguir os seus rituais, mandando-a ocupar outro candeeiro público ao lado do “seu” explicando-lhe, como só ela é capaz, dos ritos e das tramitações daquela amizade.
A praia de Quiaios é a sua praia de verão, seguramente sem saber que por ali perto cresceu um ministro que aprecia a persistência, o estudo, as estatísticas a que a economia o obriga.
Este caso raro (digo eu, que sei pouco de gaivotas, salvo que já uma vez procuraram comer do meu prato) merece a nossa atenção e deveria ter um prémio, nem que tão-só umas boas dúzias de peixes que servem pouco nas mesas dos seres humanos.
Por isso mesmo as aves voadoras, na elaboração do seu ranking anual das melhores, tiveram em conta todos os fatores possíveis e imaginários considerando o exemplo que vinha desta gaivota, os progressos no relacionamento com os humanos, o esforço para ensinar aos mais novos uma vida diferente da que lhes podia estar destinada, a empatia para chegar à quase perfeição da sua amiga que até merecia que o seu nome fosse escrito com letra maiúscula e estivesse no lugar cimeiro da lista.
Foi um ano de debate, de discussão entre todas, de tentativas para se poderem considerar exemplares, não esquecendo as rolas, os pombos correios e os outros, os papagaios e os periquitos. Embora cada um deles gostasse de figurar no ranking dos animais com asas num dos primeiros lugares, assumiram a uma só voz que a gaivota da Praia de Quiaios merecia ser a titular do principal lugar daquela lista.
Houve unanimidade, o senhor ministro que cresceu ali ao lado não foi ouvido, mas pediu a um dos seus adjuntos para preparar um texto para a conferência de imprensa, sugeriu que se aconselhasse toda a gente a pôr os olhos naquele esforço digno de admiração.
A comunicação social começou a preparar as suas primeiras páginas, repórteres das televisões dirigiram-se para o local, tudo entusiasmado com esta tabela dos melhores ou das melhores.
A lista dos voadores estava pronta a sair, tudo no segredo dos deuses. Saiu. Em primeiro lugar estava colocado um avião F-16, por estar na moda entre os países ocidentais e por ser o mais rápido dos voadores.
Foi uma surpresa para quase todos, merecendo a crítica feroz de um pombo correio que disse só ser justificável aquela decisão porque mais vale um F-16 na mão do que duas aves a voar.
Comparar o incomparável é o mesmo que querer que uma escola do fim do mundo tenha tão bons resultados como uma da capital do reino, disse o sábio pombo correio.
Os senhores meteram os discursos preparados num qualquer local que lhes aprouvesse e triste, ao saber da notícia e da injustiça que lhe fora feita, a gaivota não voltou a aparecer, para desgosto de todos os que tinham feito dela um pouco de si próprios.