Opinião: A banalidade do mal

Conta-se que S. Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas, costumava recomendar a meditação/oração quotidiana dizendo: “Todos precisamos de rezar meia hora por dia, exceto quando estamos muito ocupados: nesse caso precisamos de uma hora.” Esta excelente recomendação lembra-nos que nos períodos mais críticos é essencial parar um pouco para refletir e meditar antes de agir. Não anda longe do espírito do célebre aforismo: “não há nada mais prático do que uma boa teoria!”.
Embora a História, como o célebre rio de Heraclito, nunca passe duas vezes no mesmo lugar, o processo autofágico em que parece ter entrado a principal democracia do mundo convoca necessariamente a leitura e reflexão sobre a origem dos totalitarismos, em particular dos autores que testemunharam o nascimento e ascensão do nazismo e do estalinismo.
Entre as reflexões que permanecem mais atuais do que nunca contam-se as da filósofa alemã Hannah Arendt. Após ter realizado a reportagem, em Jerusalém, do julgamento de Adolf Eichmann, um dos organizadores do Holocausto, a escritora produziu o seu célebre livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. As conclusões de Arendt são absolutamente perturbadoras: não havia nada de especialmente maligno em Eichmann. Tratava-se apenas de um tipo comum que foi obedecendo diligentemente às ordens superiores que lhe foram chegando, sem levantar ondas, assumindo que pouco podia fazer para as contrariar e que nada ganhava com isso. Apenas um homem vulgar, a que se aplica como uma luva a descrição de Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”: “O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão — assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.” Do alto da insustentável leveza do seu ser, Eichmann foi um participante diligente e solícito da organização da operação Reinhard, em que, apenas no período entre Julho e Outubro de 1942, se procedeu ao genocídio de dois milhões de pessoas.
No Apocalipe, S. João argutamente caracteriza o mal como “o Acusador dos nossos irmãos, o que os acusava diante de Deus, dia e noite”. O mal costuma de facto ter muitas e “santas” preocupações e ser exemplar no seu cuidado pelo cumprimento das regras. Dir-se-á: E isso não é uma coisa boa? As regras não são necessárias para a sã convivência? Não devemos cumprir as regras? O autor é anarquista? Talvez se possa encontrar a chave para a resolução do problema no ilustrativo episódio bíblico em que Jesus é tentado. O diabo começa por manifestar cuidado com a Sua fome, contudo a solução que oferece é convidá-Lo a transformar pedras em pão (qualquer semelhança com a Riviera de Gaza e com os minérios ucranianos é mera coincidência). Logo de seguida, piamente invoca as Escrituras para O convencer a atirar-Se de uma torre. Finalmente, acaba por Lhe oferecer todo o poder, desde que debaixo do seu mando.
As regras do mal são assim simples de distinguir: não estão ao serviço das pessoas, mas de si próprias. O mal nem precisa de inventar regras distintas: basta-se com as que existem e distorce-as até as obrigar a fazer o contrário daquilo para que foram construídas. Aos poucos, anestesia-nos e, sem que dêmos conta, silencia as consciências ao ponto de nos fazer aceitar como trivial, banal e adequado aquilo que, se pararmos um pouco (seguindo o conselho de S. Francisco de Sales), sabemos ser inaceitável. Em tempos críticos e perturbadores como os que estamos a viver, precisamos assim todos de estar mais alertas do que nunca. A banalidade começa dentro de cada um de nós.
E a doutrinação para a não utilização de preservativo nos países com as maiores taxas de natalidade e de carga viral pelo VIH e afins? É a banalidade do quê…? Da sageza…?! Da lucidez…?!
E a facilitação de acesso a postos de destaque no universo laboral para quem tem a crença religiosa da dominância? É a É a banalidade do quê…? Do mérito…?! Da justeza…?!
E o reiterado abuso de poder conducente a todo o tipo de situações de outros abusos como o sexual e o psicológico, de que bem têm conhecimento os técnicos de saúde mental que as sequelas avaliam ano após ano…?! É a banalidade do quê…?! Da santidade…?! Da probidade…?!
Mas são todos santos e santas, não é assim? Santos e santas do mal. A banalidade do mal sempre grassou, tal como noutros, no interior do seu próprio credo. Do mesmo modo que sempre grassou a distorção, a anestesia, o silêncio dos seus crentes, a par com o silenciamento dos seus denunciatores.
A filósofa alemã, Hannah Arendt, era ateia.
E a doutrinação para a não utilização de preservativo nos países com as maiores taxas de natalidade e de carga viral pelo VIH e afins? É a banalidade do quê…? Da sageza…?! Da lucidez…?! E o reiterado abuso de poder conducente a todo o tipo de situações de outros abusos como o sexual e o psicológico, de que bem têm conhecimento os técnicos de saúde mental que as sequelas avaliam ano após ano…?! É a banalidade do quê…?! Da santidade…?! Da probidade…?! E a facilitação de acesso a postos de destaque no universo laboral para quem tem a crença religiosa da dominância? É a banalidade do quê…? Do mérito…?! Da justeza…?! Mas são todos santos e santas, não é assim? Santos e santas do mal. A banalidade do mal sempre grassou, tal como noutros, no interior do seu próprio credo. Do mesmo modo que sempre grassou a distorção, a anestesia, o silêncio dos seus crentes, a par com o silenciamento dos seus denunciatores. A filósofa alemã, Hannah Arendt, era ateia.