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bagagem d’escrita – O fabuloso mundo das boleias (Parte 6) Sérvia-2005

26 de outubro às 14 h00
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Foto de José Luís Santos

Há festas que, nos seus múltiplos sentidos, dão lugar a ressacas. Este foi mais um estudo de caso. Depois da festa, o cansaço fala mais forte e começa a tornar-se mais latente a necessidade de encontrar um espaço para repousar. Silêncio era coisa que não haveria seguramente nas próximas horas, mas sabia que a exaustão compensaria, pelo que só teria mesmo era de desenrascar um sítio adequado. Sven desfez-se em meia dúzia de tentativas infrutíferas para dormirmos num alojamento de um amigo de outro amigo que conhecia, mas sem resultados. Guça era uma vila cheia de gente, a rebentar pelas costuras, e a última coisa que ali haveria seria mesmo uma cama dentro de quatro paredes.
Quando apanhamos com um choque de realidade, resignamo-nos depois de estrebuchar o que nos for possível. Não havia nada a fazer, e a noite trouxe consigo um frio a que não estava habituado, nem preparado para apanhar num início de agosto. Só tinha trazido uma T-shirt a mais, felizmente um casaco, apesar de fino, e um par de meias. Calças, nem vê-las. O chão estava frio, e descartei essa hipótese. Por exclusão de já muito poucas partes, olhámos para a esplanada onde estávamos, centrámo-nos numa mesa e três cadeiras de plástico, e percebemos que seria aí que passaríamos a noite.
Não será necessário fazer um grande esforço para perceber que as horas seguintes seriam passadas quase em claro, sentado, com o corpo a tremer e contraído do frio, com a cabeça sobre a mesa, almofadada pelos meus braços. Ter fome, ou frio quando se tenta dormir não é algo que se recomende a alguém. Só pelas sete da manhã é que tive razões para sorrir, quando o café daquela terra abriu e nos refugiámos imediatamente na quentura do seu interior. E onde bebi um dos galões que melhor me souberam na vida.
Assistimos a desfiles etnográficos, mais música balcânica e depois de almoçar demos por concluída a nossa incursão neste confim da Sérvia. Agora sim, era hora de despedida. Sven iria seguir o seu plano e a Rússia era o seu destino. Melisdjane ficaria por ali mais uns dias, e eu seguiria o meu caminho, ainda sem saber bem por onde. Apostei em conhecer um país que soava a desconhecido, de nome Macedónia do Norte. Apanho em Çaçak um velho comboio para Niš, uma cidade que fica no principal eixo que se estende para Sul. Chegaria já de noite a essa estação final.
O comboio para Skopje só partiria na madrugada seguinte, e por ali tive de ficar. Meti conversa com os funcionários da estação, que me convidaram a entrar para o seu gabinete. Ofereceram-me algo para beber e, apesar de conversa ser difícil por causa da barreira linguística, a comunicação fluiu muitíssimo bem.
Enquanto confraternizava, não pude deixar de reparar na rica coleção pictórica de um vasto naipe de senhoras com os corpos quase como vieram ao mundo, patentes nas paredes daquele espaço em vários formatos e dimensões. Eles repararam que eu estava a olhar e riram-se. Entre duas passas no seu cigarro, um dos trabalhadores tentou-me explicar-me que era a sua “galeria de arte”. E riu-se uma vez mais.
A meio da noite, surge na sala de espera Andrea Butti, advogado milanês em viagem pelos Balcãs que também seguiria para o mesmo destino. Percebemos logo que iríamos ser companheiros de viagens nos dias seguintes, e depois de lhe dizer que dois anos antes tinha vivido no seu país, e na sua língua, tornou tudo muito mais simples e assim partimos pouco depois da hora marcada. As boleias, essas, não me abandonariam já que, dias depois, o italiano tinha contactado uns amigos que andavam a viajar pela mesma zona de carro e nós iríamos também usufruir dos dois lugares vagos.
Mas a viagem não acabava aqui, já que a melhor boleia seria vivida noutro país. (continua)

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