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“Promiscuidade Laboral” – Uma opção política, não dos Médicos!

17 de dezembro de 2025 às 11 h22
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A expressão “promiscuidade laboral” ou dual practice tem sido usada para descrever médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no privado. É uma expressão cómoda: simplifica uma realidade complexa e atribui aos médicos responsabilidades que pertencem, sobretudo, às opções políticas dos diversos governos, nomeadamente desde 1990.

Mais precisamente, em 1992 assistimos à erosão de pilares fundamentais, como o fim da dedicação exclusiva, da estabilidade contratual e da progressão profissional. Inicia-se, em 1996, a precariedade dos médicos no final das especialidades, concursos irregulares, baixos salários, multiplicação das horas extraordinárias, recuperação de listas de espera e uma verdadeira epidemia de prestação de serviços por empresas.

Os dados são claros. Mais de metade dos médicos do SNS acumulam trabalho no setor privado, incluindo a grande maioria de diretores de serviço, enquanto apenas 31% manifestam intenção de permanecer no serviço público. Estes números não revelam uma falha moral, mas sim um SNS que já não consegue oferecer condições que promovam o regime de dedicação exclusiva e a retenção dos médicos por reais opções políticas legislativas.

Neste contexto, a acumulação de vínculos não é o problema a resolver. É a consequência inevitável de um SNS fragilizado por anos de subfinanciamento, má gestão, incapacidade de qualificar a despesa pública e de estruturar carreiras que fixem e valorizem os profissionais.

À semelhança de Portugal, temos Inglaterra e Itália como dos países com mais dual practice na Europa. Cerca de 60% dos médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) também exercem atividade privada.
Felizmente, este trio europeu é uma exceção, ao contrário do que nos é “vendido”. É verdade: nos restantes países europeus e no Canadá é explicitamente proibida a acumulação de funções, impondo incompatibilidade total em cargos de direção e proibindo o uso de recursos públicos para fins privados.

A França tem um modelo público–privado, considerado um “sistema de dois níveis”, onde a dimensão privada existe, mas é muito regulada e integrada no sistema estatutário de seguro de saúde, obrigando os médicos a optar por trabalhar num único setor.

À semelhança da França, a Alemanha tem um sistema de saúde fortemente misto (público + privado), onde os médicos hospitalares são assalariados, não acumulando atividade privada. A prática ambulatória (clínica) privada e liberal é feita por médicos instalados (niedergelassene Ärzte), que também só podem trabalhar no setor privado/convencionado.

Já a Holanda é conhecida por ter um sistema altamente regulado, baseado em seguros obrigatórios privados, mas fortemente supervisionados pelo Estado. A maior parte dos médicos trabalha em organizações integradas (hospitais, grupos de cuidados, práticas de clínica geral) e, mesmo que sejam entidades privadas, a prática está toda dentro do “sistema público” financiado por seguros regulados, não existindo acumulação de funções.

Nos países nórdicos (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia), o financiamento, a contratação e a organização dos cuidados são públicos, e os regimes profissionais são contratualizados com autoridades públicas regionais e municipais (dependendo do país), não sendo permitida a acumulação de funções.

Voltemos a Portugal. O absurdo é total: os negócios da doença, pagos por contratos milionários com o Estado e por um mercado construído à custa do colapso do SNS, usam esse poder económico para roubar diretamente os médicos que o Estado formou, enquanto os sucessivos governos fomentam a promiscuidade.

A questão essencial é outra: queremos um SNS capaz de reter profissionais ou um SNS dependente de acusações morais para justificar a sua erosão? Um serviço público forte exige condições de trabalho dignas, carreiras valorizadas e uma articulação público–privado regulada. Sem isso, qualquer discussão sobre a dedicação exclusiva será apenas retórica — e tarde demais.
No fim, a escolha é simples: ou o Estado regula, paga melhor e obriga os negócios da doença a contribuir para o SNS que estão a destruir, ou rende-se e assiste, de braços cruzados, ao funeral lento e asfixiante do SNS público e universal.

Autoria de:

João Rodrigues

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