Opinião: Quando o vestido vale mais que o corpo
Parece um contrassenso. Nunca se consumiu tanta informação como agora. Mas, ao mesmo tempo, nunca o mercado da comunicação social esteve numa crise tão aguda como a que atravessa atualmente.
As vendas em banca, as assinaturas e a publicidade estão em queda acentuada. As pessoas acedem com grande facilidade a informação gratuita. Aqui não há culpados. Inegavelmente, a tecnologia veio revolucionar este setor. Embora muitos negacionistas rejeitem ver a evidência dos factos, a verdade é que os conteúdos, como as notícias produzidas por jornalistas, passaram a valer menos que o veículo que as transporta. Por veículo entende-se, por exemplo, as redes sociais que propagam a informação.
Quando o traje vale mais que o corpo, ou seja, quando o suporte de comunicação vale mais que o conteúdo, entramos facilmente no terreno pantanoso onde nos atolamos na mentira e no embuste, cuja única intenção é persuadir-nos e manipular-nos. Mas recuemos um pouco. Como chegámos até aqui?
Há vinte anos não recebíamos jornais nem revistas através das nossas redes de contacto do Whatsapp ou do Telegram. Até porque estas redes sociais ainda não existiam. As notícias não inundavam a Internet e a televisão anunciava-se como a vanguarda da informação. Nessa altura, a diretora de um importante jornal disse-me, entusiasmada, que o futuro passaria por cada leitor escolher que notícias queria ler, imprimindo assim um jornal formatado para si, em impressoras instaladas nos quiosques. Parecia ficção científica. Mas esse futuro não aconteceu. Nem sequer chegou a ser passado. Vinte anos volvidos, a realidade ultrapassou a generalidade da comunicação social. O passado engoliu muitos títulos que não sobreviveram aos novos tempos digitais. Não há presente quando o passado pesa mais que o futuro.
Hoje, como uma sala de espelhos convexos, a realidade vai-se distorcendo à medida que caminhamos para o interior da divisão. Aparece-nos pervertida, atraente, sedutora. Deixamos de distinguir a verdade da mentira. Um jogo de emoções leva-nos a clicar em “gostos” e a seguir páginas, a engrossar os números que contam: a importância de alguém mede-se pelas visualizações que angaria.
Impõe-se responder a uma questão: imprimir jornais é um negócio rentável? A tendência que tem vindo a registar-se só pode deixar-nos preocupados. Muito preocupados. Já há quem diga que a profissão de jornalista tenderá a desaparecer, como outrora desapareceu a de telefonista, ou a de datilógrafo. Todavia, encontramos youtubers milionários e influencers com estatuto de estrela, só para mencionar alguns exemplos. Hoje, cada um, com o seu telemóvel, pode ser um fenómeno de visualizações.
Tenho vindo a dizer que o papel de jornal, no futuro, será um produto gourmet. E que o jornalismo, para ser salvo, não pode limitar-se a veicular a informação que chega das instituições. Falta investigação, reportagem, notícia testemunhada e independente. Ainda que o mercado institucional seja o último filão da publicidade, de nada vale se não houver leitores que o leiam. Por outro lado, os jornalistas não devem converter a notícia em opinião camuflada, sob pena de nada diferenciar um texto jornalístico de um post no Facebook.
Felizmente há bons jornalistas, há bons jornais que privilegiam os seus conteúdos, há órgãos de informação que fazem falta. Há jornalismo, independentemente de ser no papel, na televisão, na rádio ou nos meios digitais. Felizmente há amanhã.