Opinião: As cidades não são só luzes

No livro A Produção do Espaço, publicado em 1974, o sociólogo Henri Lefebvre argumenta que o espaço não é um mero palco passivo de acontecimentos, mas um produto social, construído ativamente a partir de relações de poder e moldado por interesses económicos. Essa ideia, central e influente no desenvolvimento da sociologia urbana, tem sido amplamente utilizada para interpretar diversas dinâmicas de produção e reprodução dos espaços nas cidades do século XXI.
Considere-se, por exemplo, a progressiva antecipação das celebrações natalícias. Para os nossos pais e avós, o Natal era, essencialmente, uma festividade religiosa celebrada entre 24 e 25 de dezembro. Os rituais da época limitavam-se à decoração da árvore de Natal e ao presépio. Sucessivamente, no início do mês de dezembro, as autarquias começaram a introduzir tímidas iluminações em alguns espaços públicos. Já nos últimos anos, em Coimbra, como em muitas outras cidades do país, as ruas passaram a exibir decorações natalícias desde o fim do verão.
Essa antecipação tem vindo a ofuscar manifestações culturais e religiosas que compõem o calendário outonal. O São Martinho, com as suas tradições comunitárias e o aroma a castanhas assadas, é suplantado por uma paisagem urbana repleta de luzes e bolas coloridas. Até mesmo o Dia de Todos os Santos, um momento de reflexão e memória para muitas famílias, perde protagonismo no meio de árvores luminosas, estrelas cadentes, trenós e diversas representações do Pai Natal.
As ideias de Lefebvre ajudam-nos a refletir sobre as causas deste fenómeno. Por que razão o Natal deixou de ser uma festa confinada a dezembro e passou a coexistir com os últimos dias de praia e calor no início do outubro?
Em alguns casos a resposta é mais evidente do que noutros. Se na Venezuela de Nicolás Maduro, um decreto presidencial determinou que as celebrações de Natal começassem a 1 de outubro, noutros contextos, como em Portugal, as relações de poder apresentam-se mais subtis. O início precoce do Natal reflete as dinâmicas de uma sociedade crescentemente mercantilizada, que não só transforma a cidade num espaço dissociado das suas tradições e memórias, como a subordina a interesses económicos que definem o que se celebra, quando se celebra e como se celebra. A época que deveria ser de solidariedade, introspeção e união tem-se vindo a tornar numa maratona cansativa de consumismo. A estética urbana, que deveria servir os cidadãos e as comunidades, é instrumentalizada para alimentar a máquina económica.
As cidades portuguesas, com a sua riqueza cultural e as suas tradições diversas, merecem mais do que ser transformadas em cenários de consumo massificado. O maior presente que nos poderiam oferecer seria a recuperação do espaço urbano como local de celebração plural e autêntico, onde a tradição e a memória coletiva prevalecessem sobre os calendários ditados pelo lucro. Afinal, a cidade deve pertencer à sua gente, e Coimbra não é exceção, já que vive por estes dias um excesso de pseudo-Natal.