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Opinião: “A grande contradição das causas seletivas”

24 de julho às 13h15
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O conceito de ideologia é complexo e pode ser observado sob muitas perspetivas. Algumas consideram-na uma máscara da realidade, como a de Marx, para quem representou a «consciência falsa» do mundo, ou a de Althusser, que a viu como a «relação imaginária» que cada indivíduo mantém com a sociedade que o rodeia, submetida no domínio do coletivo ao que chamou os «aparelhos ideológicos do Estado». Pode, todavia, destacar-se o seu sentido nuclear como conjunto de ideias ou de doutrinas que consubstancia uma visão estruturada e coerente do mundo e da história destinada a influenciar a realidade.
Quando uma ideologia que se pretende libertadora determina uma perspetiva rígida da vida social e da história, confluindo com argumentos ou instrumentos de natureza autoritária – o que tem acontecido demasiadas vezes – acaba por dar argumentos aos que a combatem no que possa conter de justo e construtivo.
Daqui emerge uma enorme contradição: a produção de visões do mundo proclamadas como dinâmicas, mas que criam realidades estáticas. Foi o que ocorreu com algumas das ideologias que moldaram o século XX: criadas em nome de um futuro melhor e de um «homem novo», apostadas no aperfeiçoamento da vida coletiva, geraram sociedades desequilibradas e bloqueadas, acabando por se autodestruir. Assim aconteceu com os regimes europeus inspirados nos objetivos e métodos da Revolução Russa de outubro de 1917: em nome da luta contra a autocracia, e da defesa da igualdade e da justiça, bem como da rejeição de um capitalismo desumano e opressor, mantiveram sociedades desiguais que acabaram por ruir. O mesmo ocorreu, aliás, com experiências de desenvolvimento periféricas em relação aos países industrializados, associadas ao «socialismo islâmico», ao anticolonialismo ou ao anti-imperialismo, que em muitos casos deram lugar a regimes ditatoriais, ou a retrocessos culturais e no domínio dos direitos.
Utopias de felicidade deram então lugar a tirânicas distopias. É esse, aliás, o destino de todas as tentativas de construção de sociedades desenhadas a regra e esquadro do topo para a base. Quem leu um dos textos fundadores desta vertigem – a «Utopia», publicada em 1516 por Thomas More – conhece o modelo tantas vezes retomado: a imaginação de uma sociedade tão perfeita e previsível que, em nome de um estrito igualitarismo, não deixa lugar para a liberdade e para a felicidade. As teorias do progresso projetadas no século XVIII pelos iluministas e depois retomadas por boa parte do pensamento político de algum modo herdeiro das revoluções americana e francesa, desenvolvido no chamado ocidente no correr dos últimos duzentos anos, caíram no mesmo logro. A saber: a produção de ideologias em cujo âmago o que de melhor as sociedades humanas podem obter deve ser imposto pela coação. Neste contexto, não são as necessidades sociais a determinar as escolhas políticas, mas antes estas a impor as metas e os modos de agir.
Reside aqui a origem do problema exposto no título. Observamos governos, partidos, movimentos e indivíduos com os princípios fundamentais da liberdade ou da justiça na boca, mas que não agem em conformidade. Que as defendem, ou às causas que lhes dão corpo, quando se adequam à ideologia que proclamam, ou às escolhas do momento, mas rejeitam ou ignoram quando tal não acontece. Veja-se a forma como são ignoradas, relativizadas ou justificadas iniciativas autoritárias, ou mesmo brutais, de governos como os da China ou da Venezuela, ou da Rússia e da Síria, apenas porque o fazem em nome de princípios considerados «bons» no estrito plano da tática e da ideologia. Escreveu Camus, em «O Homem Revoltado», que «aquele que compreende a realidade e não se insurge contra ela, mas antes lhe faz companhia, não passa de um conformista». Sê-lo na companhia de belas palavras de progresso, justiça e felicidade é uma enorme contradição.

Pode ler a opinião de Rui Bebiano na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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