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Opinião: A crise oculta da desigualdade no acesso ao conhecimento

17 de dezembro às 11h27
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Num mundo onde os apelos à transparência e à inclusão ressoam em todos os cantos da sociedade, há um obstáculo rígido que persiste: o acesso ao conhecimento. O privilégio de aceder ao conhecimento é uma das divisões mais silenciosas e persistentes da sociedade, escondida à vista de todos.

O economista francês Thomas Piketty, na sua obra influente sobre a desigualdade global, oferece um quadro poderoso para compreender as disparidades contemporâneas. A sua premissa central, de que a desigualdade de riqueza tem raízes históricas profundas e é perpetuada por sistemas de poder e privilégio, estende-se naturalmente ao domínio do conhecimento. A desigualdade no acesso ao conhecimento, tal como a desigualdade de riqueza, é uma divisão abrangente moldada por forças semelhantes, afetando a sociedade de maneiras profundas, mas frequentemente negligenciadas.

Barreiras geográficas no acesso ao conhecimento e à inovação

O conhecimento tem sido, há muito, reconhecido como um dos principais motores de mobilidade social, inovação e progresso económico. No entanto, o acesso ao conhecimento, em particular à investigação académica e aos avanços científicos, permanece altamente estratificado. Historicamente, a produção e disseminação de conhecimento têm sido controladas por instituições em países de alto rendimento, que frequentemente monopolizam a investigação, as revistas científicas e as descobertas científicas.

Este desequilíbrio faz com que aqueles que vivem em países de baixo e médio rendimento tenham acesso limitado às descobertas e inovações mais recentes, criando um sistema de distribuição de conhecimento a duas velocidades.
A ideia de Piketty sobre a acumulação de capital e a concentração de riqueza entre poucos pode ser comparada à acumulação de capital intelectual em instituições com recursos. A analogia é clara: tal como a riqueza gera riqueza, o conhecimento gera conhecimento. Os países da OCDE, com universidades de prestígio e institutos de investigação altamente classificados, têm os recursos para produzir investigação de ponta, que é frequentemente publicada em revistas científicas protegidas por paywalls proibitivos. Este sistema perpetua um ciclo em que os grupos privilegiados mantêm a sua supremacia intelectual, enquanto académicos e instituições de contextos menos privilegiados lutam para contribuir significativamente para o discurso global.
Os gastos com Investigação e Desenvolvimento (I&D) estão fortemente concentrados, com cerca de 10 países a representarem 75% do total global. Esta concentração distorce o panorama do conhecimento para regiões com abundância de recursos, particularmente os Estados Unidos e a China, que juntos representam cerca de 50% do investimento global em I&D.

Estruturas para a transparência e colaboração

O modelo tradicional de publicação científica, de pagar para ler, há muito que reflete esta desigualdade. Durante décadas, o padrão tem sido o acesso a revistas académicas baseado em subscrições, exigindo que indivíduos ou instituições paguem taxas elevadas para aceder a artigos. Para muitos, em países de baixo rendimento, estas subscrições de jornais científicos são simplesmente inacessíveis. Esta barreira financeira restringe o fluxo de informação científica para aqueles que mais dela precisam, reforçando a divisão global na educação, ciência e inovação.

A publicação em acesso aberto (OA, na sigla em inglês) desafia diretamente este status quo. Ao tornar a investigação acessível a todos, independentemente da localização geográfica ou capacidade financeira, o OA procura democratizar o acesso ao conhecimento. Em 2020, as publicações em acesso aberto superaram pela primeira vez o modelo tradicional baseado em subscrições, marcando uma tendência importante na evolução da comunidade científica global. Esta tendência consolidou-se em 2023, com cerca de 65% dos artigos publicados em OA. Além disso, o OA permite que cientistas e académicos de todas as partes do mundo, incluindo regiões com poucos recursos, participem na criação e partilha de conhecimento.

De forma semelhante, a ciência aberta (OS, na sigla em inglês) promove estes ideais, incentivando a transparência, a colaboração e a partilha de dados e métodos além-fronteiras. Esta prática encoraja a partilha de todo o processo de investigação, desde os dados brutos às metodologias e pré-publicações, garantindo que o conhecimento seja não só acessível, mas também replicável e verificável.

A ciência aberta, com a sua ênfase na transparência e cooperação, representa uma mudança estrutural para enfrentar as disparidades profundamente enraizadas na comunidade científica tradicional, em linha com a análise de Piketty. Esta prática desloca a comunidade científica de um sistema que privilegia a exclusividade para um que sistema que valoriza a inclusão e a equidade. Isto é particularmente vital perante os desafios globais como as alterações climáticas, pandemias ou a insegurança alimentar, onde as melhores soluções globais terão de emergir de uma diversidade de vozes e experiências, e não apenas das mais ricas ou prestigiadas.

O apelo a uma mudança sustentável

Ao considerarmos as lições do trabalho de Piketty, torna-se evidente que a luta contra a desigualdade deve ser travada em múltiplas frentes.

A desigualdade de riqueza é uma preocupação urgente, mas também o é a distribuição desigual do conhecimento. A publicação em OA e a ciência aberta são estratégias chave para enfrentar este problema, oferecendo um caminho para uma comunidade científica global mais equitativa, onde os benefícios do conhecimento sejam partilhados e reutilizados por todos, e não apenas por alguns.

Para a comunidade da ciência, recai sobre nós a responsabilidade de apoiar e advogar pelo acesso aberto. É através destes esforços que podemos contribuir para um mundo mais justo e equitativo, onde o conhecimento, tal como a riqueza, deixa de ser um privilégio de poucos para se tornar um direito de todos.
Publicado no Diplomatic Courier por Rui Duarte, como autor convidado: https://www.diplomaticourier.com/posts/the-hidden-crisis-of-knowledge-inequality

 

Autoria de:

Rui Duarte

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