O primeiro regime político de Soares a cair com uma bíblia em África

A antiga primeira-dama de Moçambique, Graça Machel, de 79 anos, viúva dos presidentes Samora Machel e Nelson Mandela, foi obrigada esta semana a caminhar até à sua viatura de luxo por populares que bloquearam a estrada principal que liga o centro da capital moçambicana ao Aeroporto Internacional de Maputo.
Pela primeira vez em 50 anos de partido único, os moçambicanos deram o peito às balas da polícia e dos militares, insultando com assobios e apupos aquela que outrora foi considerada “heroína” da libertação nacional e “Mãe” da nação moçambicana independente. No outro lado da cidade, outros tantos, estes funcionários da Procuradoria-Geral da República, manifestavam-se contra o sistema na escadaria de entrada da PGR.
Em causa, está uma alegada megafraude eleitoral do partido Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de Graça Machel, no poder desde 1975, e que se recusa a divulgar “provas” dos verdadeiros resultados eleitorais e da esmagadora vitória de 70% que diz ter obtido a nível nacional.
Cinquenta anos após Mário Soares, e a esquerda política e militar portuguesa responsável pelo golpe de Estado militar em Portugal, terem entregado diretamente o Estado e o poder, sem referendo nem eleições, à Frelimo, então grupo armado, estes dois episódios significam o fim do primeiro sistema político de ditadura, corrupto e opressivo, que foi instalado por cinco décadas em Moçambique. Um sistema que desde a independência continua a matar oponentes; que enviou milhares de jovens e adultos, incluindo idosos, para “campos de reeducação”; expulsou naturais do país por serem “brancos”; além de nacionalizar propriedades privadas para distribuir por membros do partido, e de promover uma guerra civil durante 20 anos, entre outros, subjugando a sociedade moçambicana ao subdesenvolvimento humano.
Para a Frelimo, o parceiro de eleição de Portugal e da Europa socialista, a realização de eleições em parceria com os países europeus, a União Europeia, e as Nações Unidas, tem sido uma questão “política” e não “técnica”.
Todavia, sem armas e apenas com uma bíblia na mão, o povo moçambicano que votou no mês passado de norte a sul do país no candidato da oposição autodeclarado vencedor das eleições presidenciais, o pastor Venâncio Mondlane, obrigou o sistema a cair de podre na rua.
E agora? Vai ou não o atual Governo português e os partidos políticos com assento parlamentar, nomeadamente da Esquerda; a União Europeia, e as Nações Unidas, continuar a legitimar em defesa dos seus interesses uma ilegalidade de cinco décadas no poder em Moçambique?
Que vergonha para o autor e para o jornal tratar o 25 de Abril como “golpe de Estado militar”. E atribuir um acordo ratificado pelas autoridades portuguesas, no seu todo, a Mário Soares. Que tinham muitas opções depois de o Estado Novo ter continuado uma luta impossível durante décadas. Percebi a inclinação política do autor, mas ao menos pede-se decência e respeito pelos factos e pela data que permitiu a Portugal tornar-se um país democrático.