Opinião – Entre o céu e a terra Quirguistão – 2015

Posted by
Spread the love

Acordo cedo para sair de Bishkek, a capital do Quirguistão. Após o valor negociado com o condutor, entro para uma carrinha onde toda a gente olha para mim com cara admirada e curiosa pois eu era o único estrangeiro que ali ia, uma reação a que me iria habituando nos dias seguintes.
A paisagem é desértica, coroada por suaves cordilheiras montanhosas. A tonalidade quente é quebrada pelo surgir no horizonte da imensidão azul do Lago Ysyk-Kol, que se vê ao longe à nossa esquerda. Na rua principal, de Kochkor é dia de mercado, e a agitação é ainda maior. Ninguém fala inglês, eu preciso de ir para o Lago Song Kol por um preço razoável e o panorama não é muito positivo quando uma jovem se apercebe do meu desespero me arranja uma boleia.
Agradecimentos feitos, subo para uma velha Mercedes amarela da década de 70 e sigo caminho. À medida que a altitude se vai fazendo sentir, vejo a paisagem a mudar, a perder a sua aridez, que aos poucos vai sendo trocada por um enorme manto verde que tanto caracteriza esta região montanhosa. Apesar de estar nos últimos dias de julho, a neve ainda persiste em bastantes cumes. A estrada há muito que deixou de ser asfaltada e a trepidação da terra batida impõe-se sem misericórdia.
Sob os raios de luz mais suaves do fim de tarde, chego a Song-Kol, um lago a 3000 metros de altitude junto ao qual se encontram algumas tendas mongóis, as yurts, onde povos nómadas se instalam no Verão. Trazem consigo o seu gado, a par do bem mais valioso, os cavalos, para tirarem partido da erva suculenta que estes prados dão no Verão. Quando o Outono lhes bate à porta, com as temperaturas a descer vertiginosamente, sentem que é altura de regressar às terras baixas, paras as aldeias ou vilas onde habitam, já que todo este espaço ficará coberto de neve.
Senti que tinha chegado a outra dimensão. Os cavalos, sem sela, vagueavam soltos pelo campo aberto, ora bebendo água do lago que dá vida a tudo o que o meu olhar alcança, ora correndo freneticamente e sem destino. Ao fim da tarde, um ou outro rapaz mais novo passa com o seu burro a caminho do lago para ir buscar água para beber, cozinhar ou tomar banho, um estímulo ao meu imaginário sobre os povos da Antiguidade. As crianças brincam, mas também trabalham, seja a procurar bosta seca para aquecer o fogão de casa ou a reunir o pastoreio ao fim do dia para uma pequena cerca. Todos se sentem como parte imprescindível de um todo.
De manhã, uma das tendas é uma escola onde recebem ensinamentos de uma professora para ali destacada, e o aluno mais traquina exibe-me, orgulhoso, a sua camisola do Cristiano Ronaldo. Um homem mais velho, quiçá o seu pai, quando lhe digo que sou português, quase que me implora para que eu, quando o vir no meu país, lhe dizer que o Ahmed do Quirguistão lhe manda um abraço.
Este povo alimenta-se do que tem: carne de carneiro e cavalo são a ementa do dia. Bebem cumus, um leite de égua com um sabor fortíssimo a que só me atrevi a arriscar um pequeno gole, ou o shorepo, um caldo de ovelha com carne cozida a que se junta massa para encher a barriga.
A noite traz consigo uma descida abrupta da temperatura. Ganho coragem para vir cá fora, encantado pela lua a iluminar um céu azul limpo quando todos já estavam a dormir, e detenho-me ali, só, observado apenas pela luz das estrelas que brilham tão forte.
Dentro da yurt, debaixo de várias mantas, depois de ter aquecido as mãos no pequeno fogão que ainda partilhava uma réstia do seu calor, fecho os olhos convencido de que ainda existem paraísos entre o céu e a terra onde o Homem sabe viver em harmonia com a natureza que o rodeia.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.