bagagem d’escrita: Cicatrizes abertas Palestina/Israel – 2014

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Desde pequeno que, quando ouvia falar de campos de refugiados, vinha-me à cabeça aquela imagem de pessoas a viver em tendas. Esse era o imaginário que me acompanhou durante anos, fruto das notícias sobre deslocados de guerras que assolavam o mundo.
Quando cheguei a Belém, decidi ir dormir a um dos principais campos de refugiados que se situam perto do centro da cidade, o de Deira. Fiquei boquiaberto com o que os meus olhos viam, pois afinal tratava-se de um bairro residencial que me pareceu que não reunia o mínimo de condições em tantos aspetos. Era fácil depreender que tudo isto era resultado de uma solução muito afastada do ideal, sendo apenas a possível para quem para ali teve de fugir depois de ter sido expulsa das suas próprias casas na Nakba, a “catástrofe” como designam os palestinianos para se referirem ao ano de 1948, e depois de 1967, quando foram alvo de um êxodo forçado das suas terras, com um saldo de milhares de mortos pelo meio, rumo a um espaço onde seria suposto ficarem provisoriamente até terem o seu próprio Estado, algo que ainda nos dias que correm não se vislumbra.
Fiquei no edifício que funciona como centro cultural e espaço de convívio, que também tem alguns quartos para visitantes. Foi aqui que conheci Hassan, um ativista político que já conta com um percurso tortuoso que inclui a passagem pelas cadeias israelitas. A conversa muito estimulante e combinámos de nos encontrar ao pequeno-almoço para irmos dar uma volta junto a um dos maiores símbolos da opressão do ocupante judaico.
Com o estômago bem aconchegado, material fotográfico e bloco de notas prontos a serem usados, partimos para a zona desta cidade que foi abruptamente cortada pelo tão mal-afamado Muro da Palestina. Construído em 2004 para separar a parte judaica da palestiniana, este que é também apelidado como “muro da vergonha”, “muro do apartheid” ou “muro da separação” (muro de segurança para o governo israelita) estende-se ao longo de 760 quilómetros de extensão na Cisjordânia. Ainda a sua construção não tinha dado os primeiros passos quando o estado hebraico foi formalmente acusado por estar a violar o Direito Internacional não só por estar a separar todo um povo com esta construção que chega aos oito metros de altura como também estar a prejudicar a agricultura deste povo que sofre de uma economia já por si debilitada, a que se junta o roubo de pontos de água tão imprescindíveis para os árabes. E também de ser uma forma de tentar normalizar a ocupação ilegal destas terras por colonatos israelitas que, sobretudo desde a guerra dos seis dias em 1967, ocupam boa parte deste território à margem da lei.
O muro é horrendo. Corta a paisagem com uma violência assustadora. Sinto-me quase um grão de areia perante tamanho mamarracho de betão armado que me faz só pensar que o Muro de Berlim ao pé disto seria para principiantes. Esta interminável parede tornou-se, por outro lado, num enorme mural de arte onde constam obras de Banksy junto de autores desconhecidos dos quatro cantos do mundo que aqui se deslocaram para deixar o seu grito de revolta perante este atropelo dos direitos humanos que aqui se vive há demasiado tempo.
Junto a uma torre de vigia israelita chamuscada por pneus a arder, fruto de uma rebelião deste povo, em que do lado direito estava pintado um jovem com o tradicional lenço árabe e a atirar uma pedra com uma fisga, Hassan detém-se junto de mim a olhar na mesma direção.
– Eles chamam a isto vandalismo, ou terrorismo. Para nós, é um ato de resistência – sublinhou, dando-me uma palmada nas costas pois ainda havia muito para ver. (continua)

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