Opinião: Uma líder não se mede pelo seu aparelho reprodutor

Joe Biden desistiu da corrida presidencial nos Estados Unidos da América (EUA), e tudo indica que será substituído por uma mulher, Kamala Harris, habituada a ver o seu nome associado ao pioneirismo feminino: a candidata, que já foi por diversas vezes a primeira mulher nos cargos que desempenhou, quer ser agora a primeira mulher à frente da Casa Branca. O currículo de Kamala fala por si mas, para os seus opositores, tem uma grave lacuna: ela não tem filhos biológicos. Na verdade, Kamala Harris é madrasta e ajudou o marido a criar os dois filhos dele, Cole e Ella, mas o facto de não os ter gerado é apontado como uma limitação às suas capacidades de liderança do país. Para um homem bastaria a capacidade de inspirar os outros, a inteligência e a criatividade, a empatia, a flexibilidade e a resistência, a competência, o poder de decisão, o sentido de missão e de dever. Mas quando se trata de uma mulher, estas características são postas em causa se o seu sistema reprodutor não tiver provas dadas.
Kamala Harris é vice-presidente dos EUA e faz este ano 60 anos. Nasceu em Oakland, na Califórnia, filha de dois académicos imigrantes: uma mãe de origem indiana e um pai jamaicano. Formou-se em Direito na Universidade da Califórnia, em Hastings, e começou a sua carreira como advogada. Nos diversos cargos que desempenhou nas últimas décadas foi muitas vezes a “primeira mulher em funções”. Foi a primeira mulher e a primeira negra procuradora distrital de São Francisco e a pioneira no cargo de procuradora-geral da Califórnia. Foi a primeira negra candidata e eleita vice-presidente dos EUA. Agora, luta para ser a primeira mulher e a primeira afro-americana na história da Presidência do país.
Kamala parece personificar a antítese do candidato que concorre contra ela, Donald Trump. O seu trabalho na área jurídica foi centrado no combate à violência sexual e aos crimes ambientais. Como procuradora distrital, montou uma unidade contra crimes de ódio focada na discriminação contra a comunidade LGBTQ+ e o bullying nas escolas. As posições públicas que tem assumido permitem estabelecer, com clareza, as diferenças: defende o direito à interrupção voluntária da gravidez e a abolição da pena de morte, parece comprometida em minimizar o impacto das alterações climáticas e em rever as políticas de imigração, de forma a salvaguardar os direitos e a dignidade das pessoas. Kamala tem recebido o apoio de vários nomes importantes do Partido Democrata, desde logo do atual Presidente Joe Biden – que já reconheceu publicamente que escolher Kamala Harris para vice-presidente foi “a melhor decisão” que tomou – mas também de Bill e Hillary Clinton ou Barack e Michelle Obama.
Kamala casou-se aos 41 anos com Doug Emhoff, que era divorciado e tinha dois filhos do primeiro casamento. Dois enteados que a apelidam, carinhosamente, de “Momala”. No entanto, o candidato a vice-presidente dos Republicanos, J. D. Vance, acha que Kamala não é Mãe – pobres dos que não sabem que os filhos nos crescem no coração mais do que na barriga – e, não sendo Mãe, não reúne as condições necessárias para dirigir o país. Foi ele que o disse numa entrevista, em 2021: “todo o futuro dos Democratas é controlado por pessoas sem filhos. Faz sentido entregarmos o nosso país a pessoas que não têm um interesse direto nele?”, perguntou, dando exemplos como Kamala Harris ou Alexandria Ocasio-Cortez, mulheres que, segundo o candidato, são “infelizes com as suas próprias vidas e as escolhas que fizeram”. Parece ser consensual que Kamala é uma mulher inteligente, corajosa, trabalhadora e comprometida com o bem comum. Do outro lado da barricada os EUA têm uma equipa para quem uma mulher se resume ao seu aparelho reprodutor. O “interesse direto” que um líder tem no seu país não se mede em filhos, mas poder medir-se pelo respeito que este revela pelos seus cidadãos, homens e mulheres inteiros, livres nas suas opções e no caminho que escolhem para as suas vidas. Uma mulher continua a ser uma mulher, mesmo que não queira ou não possa ter filhos – isso em nada a diminui. Uma líder não se mede pelo seu aparelho reprodutor. Já um líder que se mostra incapaz de entender isto é claramente inapto para o desempenho das funções.