Opinião: SNS: gestão, ética e outras coisas

Inicio este Comentário com uma nota prévia: o último dia do ano que há pouco terminou assinalou o fim de mais de meio século da minha atividade profissional. Há uns meses, discuti aqui as circunstâncias que me obrigaram a deste modo terminar uma vida dedicada à medicina e aos doentes, e não vou repetir-me. Tenho, contudo, de confessar que os últimos meses a caminhar para esta despedida não foram fáceis. Por isso, estranho os que esperam ansiosamente pelo momento da reforma, ou os que não aproveitam na íntegra a vida profissional enquanto a têm, nesta como em quaisquer outras profissões. Penso que é altura de modificar a lei. Quem quiser ficar, fique; quem não quiser, saia…
Mudando de assunto. As últimas semanas do nosso SNS, foram marcadas por dois aspetos controversos, quiçá interligados. O primeiro, porventura o mais visível, é que, apesar de todos os esforços feitos por esta equipa ministerial, e acredito que os tenham feito, a situação das emergências, com longas filas e tempos de espera, e dos serviços encerrados, principalmente nos fins de semana e dias festivos, não se alterou significativamente, para desespero de todos aqueles que deles precisam. A atual ‘epidemia’ de gripe não veio ajudar nada!
Ainda é cedo para avaliar o efeito das restrições à entrada nas urgências, com a finalidade de evitar o acesso de quem verdadeiramente não necessita, aparentemente cerca de 30%. Espero que o Projeto “Ligue Antes, Salve Vidas” do SNS 24 sirva, pelo menos, para educar a população para a necessidade absoluta de uma procura mais criteriosa dos recursos hospitalares.
Ora esta gestão do SNS depende de outros fatores, mas o principal, em minha opinião, são os próprios gestores. Já o tenho afirmado muitas vezes. Sem bons gestores, comprometidos com a causa e as regras instituídas por quem governa, não iremos a lado nenhum. Nas últimas semanas, temos assistido a muitas mudanças de conselhos de administração dos hospitais, hoje transformados em Unidades Locais de Saúde (ULS). E, ao que parece, muitas outras se seguirão. Há um par de meses, o então Diretor Executivo do SNS (agora temos outro, o terceiro em menos de 3 anos!) tinha prometido uma “limpeza geral”. É necessária, mas tudo dependerá de quem for nomeado para as administrações hospitalares. Espero que não se esteja apenas a trocar uns boys por outros…
De uma coisa continuo a estar seguro: o principal problema não é a tão proclamada falta de recursos humanos; antes reside na gestão daqueles que temos. A todos os níveis, mas mais importantemente, nos serviços clínicos. E quem tem experiência sabe bem quão difícil é conseguir concertar os múltiplos interesses pessoais e de classe que se defrontam no dia a dia. E, por isso, é fundamental mexer nas direções de serviços. Na sua nomeação e na sua avaliação. Curiosamente, no meio de tantas reformas não vejo nada nesse sentido. Não tenhamos dúvidas, o sucesso de qualquer instituição hospitalar mede-se pelo sucesso dos seus serviços clínicos!
Mudando outra vez de assunto, não quero deixar de referir-me à questão do acesso ao SNS dos “imigrantes ilegais”, que tanta discussão tem suscitado nos últimos tempos, sobretudo por razões de natureza ideológica. Mas não só: refiro-me à posição assumida pela Ordem dos Médicos, que cofesso não ter compreendido bem. Curiosamente, diametralmente oposta à do anterior bastonário, sem desmerecer do facto de que ele está agora em funções políticas, que afirmou que “de forma irresponsável, o acesso gratuito ao SNS foi oferecido a todos os cidadãos do mundo”!
E estranho a atitude assumida por “umas centenas” de profissionais que contestam a lei aprovada no parlamento que limita o acesso gratuito de imigrantes em situação irregular aos cuidados de saúde no SNS. A aceitação, ou não, destes doentes não está dependente deles. Passa pelo setor administrativo, que determinará se a situação é legal ou não. Naturalmente, a ilegalidade tem de ser bem definida e situações de verdadeira emergência terão de ser atendidas.
Evidentemente, não ponho em causa a utilização dos serviços por quem aqui entrou por outros motivos que não apenas esse. Estou, tão somente, a referir-me, por exemplo, ao corredor de entrada de grávidas no fim de gestação, apenas para o parto. Mas não só nesta especialidade. Vêm atraídos pela gratuitidade e pela qualidade dos serviços. Pois que venham, mas que os paguem! Durante muitos anos, operei no SNS doentes estrangeiros cuja vinda foi sempre condicionada à sua aceitação do custo que a administração atribuiu aos atos praticados. No chamado “turismo de saúde”, existente em muitos países desenvolvidos do mundo, os estranhos pagam pelos cuidados que vão receber.
E não me parece que estejam aqui envolvidas questões de ética. Aliás, questiono-me se aqueles profissionais utilizam ou utilizariam os mesmos critérios de ética nos operadores privados. Aí ninguém entra sem pagar…