Opinião – Quantos quilómetros nos impediram de salvar a Rebecca?
Rebecca Cheptegei tinha 33 anos e era atleta olímpica. Recentemente, representou o Uganda nos Jogos Olímpicos, em Paris, como maratonista, tendo terminado a prova em 44.º lugar. Há uns dias, num domingo igual aos outros, Rebecca ia a entrar em casa, com as duas filhas, quando foi atacada pelo namorado, o também atleta queniano Dickson Ndiema Marangach, que a regou com gasolina e lhe pegou fogo. A atleta esteve alguns dias a lutar pela vida no hospital mas, com queimaduras em 80% do corpo, não sobreviveu. O crime passou-se à frente das filhas da maratonista, duas meninas de 9 e 11 anos. Ainda não foi confirmado se as crianças também foram atingidas pelo fogo, mas em relação ao impacto da tragédia sobre elas não há qualquer dúvida: duas crianças viram a Mãe ser queimada viva, à sua frente, e nada puderam fazer para o impedir. Li a dor do pai de Rebecca, Joseph Cheptegei, que falou aos jornais, pedindo que seja feita justiça e confidenciando, ainda incrédulo, que nunca tinha visto um ato “tão desumano”. Mas que justiça pode ser feita, perante um horror assim?
Segundo fontes próximas, a relação apresentava, há já muito tempo, um quadro de violência doméstica: as discussões eram constantes e agressivas. Ultimamente, eram cada vez mais frequentes e violentas, porque Rebecca tinha-se mudado para uma casa que ficava mais perto do seu centro de treinos e o companheiro não aceitava a mudança. Era um desses homens que não aceita que as mulheres tenham planos, sonhos e ambições para além da relação amorosa e da vida dentro de casa. Mas Rebecca queria ir mais longe e não se cansava de procurar novas metas: queria continuar a correr, correr mais, correr melhor. E estar mais perto do centro de treinos ajudava-a a treinar. Tudo o que Rebecca queria era ser melhor. Que as suas pernas corressem tanto como os seus sonhos.
Estas tragédias quase nunca são silenciosas. É raro haver uma fatalidade destas sem prenúncio: o horror faz-se anunciar – e deixa rasto. Sempre que uma história de violência doméstica acaba assim, há alguém que reconhece que os sinais, mais ou menos evidentes, já lá estavam: as discussões, a agressividade, os gritos, o medo. As pessoas veem e calam, porque ainda há a ideia de que o que se passa em casa, entre um casal, deve ficar em casa. Mas a responsabilidade é nossa, também. Segundo fontes próximas, a relação manifestava, há já muito tempo, um quadro de violência doméstica.
“Mas isso é lá com eles”. Não é: a violência contra as mulheres é um problema de todos nós. Não há mulheres que “gostam de apanhar”. Isso não existe. Há, sim, mulheres assustadas demais para denunciar. Mulheres pobres demais para sair de casa. Mulheres humilhadas demais para achar que merecem melhor. Mulheres magoadas demais para acreditar que a vida pode ser diferente. Mulheres que pensam que têm a situação controlada, que ele vai parar, que é só um pesadelo. E um dia, num domingo normal, a chegar a casa com as meninas pela mão, a situação chega ao limite. Já havia sinais, mas ninguém pensou que ele fosse tão longe.
Foi no Quénia, mas podia ter sido em qualquer lugar: todos os dias, em todo o mundo, morrem mulheres vítimas de violência doméstica, mulheres que não conseguimos ajudar, histórias de horror às quais chegamos tarde demais. Foi uma atleta olímpica, mas podia ter sido qualquer mulher: a violência doméstica é pouco seletiva, bate a todas as portas. Foi há menos de um mês, a 11 de Agosto, que Rebecca Cheptegei cruzou a meta depois de correr 42,195 km – a distância de uma maratona – em Paris. Menos de um mês depois, de regresso a casa – uma casa nova, estrategicamente situada perto do centro de treinos, para dar velocidade aos seus sonhos de maratonista – Rebecca não conseguiu correr o suficiente para fugir à morte, às mãos de um homem por quem, em tempos, se apaixonou. Quantos quilómetros nos separam, ainda, do dia em que vamos conseguir chegar a tempo de salvar as mulheres que enchem, diariamente, as páginas dos jornais? Quantos quilómetros nos impediram de salvar a Rebecca?