Opinião: Nas histórias de príncipes e princesas não há crianças como protagonistas
Desde 2015, houve mais de 800 casamentos infantis ou forçados, com menores, em Portugal. A maioria dos jovens que dão corpo e rosto a estes números tem entre 15 e 18 anos. Em 346 dos casos as crianças envolvidas têm idades compreendidas entre os 15 e 16 anos, em 126 casos as vítimas têm entre 10 e 14 anos. As raparigas menores de idade, com menos de 18 anos, são as mais afetadas por este fenómeno escondido e silencioso. Foram identificados 836 casos: 493 casamentos infantis, 261 casamentos precoces e 82 casamentos forçados. Contos de fadas transformados em pesadelos.
As estatísticas são pouco precisas, porque na maioria dos casos há apenas uniões informais (os envolvidos mantêm-se solteiros), mas os números mostram que o casamento precoce – envolvendo pessoas cujo nível de desenvolvimento físico, emocional, sexual e psicológico as torna incapazes de dar consentimento pleno e livre ao casamento – tem vindo a aumentar. Este fenómeno parece afetar especialmente as meninas, cujo direito à saúde e à Educação é, muitas vezes, negado dentro destas uniões. A idade média das vítimas é de 15 anos para as raparigas, 17 anos para os rapazes. As meninas são as principais vítimas: casam mais e mais cedo. As consequências estão documentadas: gravidez na adolescência, abandono escolar, isolamento social, violência doméstica, casamento de conveniência e/ou tráfico de seres humanos.
A investigação na área concluiu que são principalmente os pais das crianças a incentivarem estes casamentos, embora haja uma aceitação natural por parte dos envolvidos que, por norma, estão inseridos em sistemas sociais que determinam o casamento como objetivo de vida. Muitas vezes, esse mesmo sistema impõe a união dentro do mesmo grupo étnico, cultural ou religioso. O controlo sobre a liberdade da mulher e a sua sexualidade continua a ser uma das grandes motivações, bem como o desejo de independência de algumas jovens – um desejo que, na maioria dos casos, acaba por ser frustrado: a menina deixa de ser pertença do pai para passar a ser pertença do marido. Algumas tentam escapar à pobreza ou a situações de violência e abuso familiar e ficam presas num ciclo que parece impossível de quebrar.
A infância não se repete. As crianças têm direito a ser crianças, a viver com espaço, tempo e liberdade para o seu desenvolvimento. Elas são o tesouro do mundo: têm de ser protegidas contra o abandono, a violência e as imposições abusivas que não respeitam o seu direito à individualidade e ao livre-arbítrio, a crescer em segurança, amor e equilíbrio. Para milhões de meninas – que continuam a ser mais vulneráveis do que os meninos – o casamento antes da idade adulta é o início de uma vida de terror e sofrimento: a maioria fica presa num ciclo de pobreza, subjugação e dependência; tem que abandonar os estudos, é vítima de violência e obrigada a engravidar.
O casamento infantil é uma violação dos direitos humanos. No entanto, se o casamento forçado é crime em Portugal, independentemente da idade da vítima, o casamento precoce é legalmente consentido. Em Portugal, o casamento é permitido a partir dos 16 anos, sendo, nestes casos, necessária uma autorização dos progenitores ou tutores legais ou uma autorização do conservador do registo civil. O casamento emancipa o menor: depois de casado, passa a ser considerado maior de idade, pela Lei. Sabemos que o problema é complexo: esta luta é, também, a luta pela igualdade de género, pelo direito das mulheres à Educação, à autonomia, à saúde sexual e reprodutiva, à participação na vida civil.
Mas comecemos pelo que é mais simples: em Portugal, a escolaridade é obrigatória até aos 18 anos. É preciso ter 18 anos para votar, porque é preciso ter um nível de maturidade que permita decidir em consciência e em liberdade. Então, como é que os pais se podem sobrepor ao Estado, numa decisão que é uma das mais importantes da nossa vida individual e pessoal? Nas histórias de príncipes e princesas não há crianças como protagonistas: o lugar delas é do lado de fora dos livros. A ler e a sonhar.