Opinião: Mercados digitais: o gap de valor dos dados

Os dados podem ter um valor de uso e um valor de mercado. No mundo digital, as trocas são determinadas pela utilidade particular que tem, para o indivíduo, o uso do bem. Por valor de troca entende-se o reconhecimento, por parte da coletividade, dessa grandeza. Por valor de mercado entende-se o preço médio praticado nos bens similares naquele momento e no preciso mercado. O valor de uso é mais subjetivo. De facto, além de dificultar a comparação, tende a sobrelevar o efeito propriedade. No mundo digital, os utilizadores revelam uma ausência de compreensão qualitativa e quantitativa sobre a problemática dos dados, ou seja, os utentes, mesmo aqueles que dizem que atribuem à privacidade um alto valor, revelam tendência para acriticamente facultarem os dados se obtiveram uma retribuição imediata.
De facto, a falta de conhecimentos distorce a disposição de pagar por algo (willingness to pay) e o valor que se exige para renunciarem a alguma coisa (willingness to accept), ou seja, por exemplo, o valor médio para a utilização do Facebook será a volta de 5€, enquanto para deixar de utilizar a rede os utilizadores atribuem o valor de 65€/ mês. Esta deturpação dificulta a análise de distribuição de direitos, atendendo à existência de um gap de valor a cerca do mesmo bem. No caso dos mercados digitais, a compreensão acerca da renúncia à privacidade ou o custo pago não é claro. Neste sentido, o utilizador não busca uma remuneração satisfatória, e pouco valoriza, em termos de análise económica do direito, corretamente o direito à própria remuneração. Neste negócio, curiosamente, a palavra “venda” desaparece, porque, psicologicamente, tem o condão de ativar automaticamente instintos para potenciar estratégias individuais.
É, contudo, importante perceber o papel do utilizador e os seus dados na economia digital, para se caminhar tendencialmente para uma maior transparência. Deste modo, perceção de gratuidade é prejudicial aos utilizadores e à economia. É importante ambas as partes terem conhecimentos acerca dos termos da negociação (trocas não monetárias) e do objeto (distinção entre o valor dos dados para as plataformas, do custo dos dados para o utilizador, situação possível de conduzir os utilizadores a praticar estratégias de maximização), esclarecimento que parece não interessar às plataformas, mas que traria certamente transparência à problemática dos dados.
A busca dos agentes por mais eficiência acabou por fomentar o atual cenário de concentração. No entanto, a consideração da teoria dos ciclos em economia, concebida por Schumpeter, mesmo em cenários concentrados, prescreve que as plataformas são obrigadas a serem inovadoras, sob pena de transferência dos utilizadores para uma rival incumbente, situação que parece não ser o cenário mais positivo. De facto, a concorrência é, ao mesmo tempo, um direito da sociedade e uma característica fundamental dos mercados. Não existem, nem irão existir, soluções perfeitas para a questão da concorrência. No atual cenário, a sujeição das plataformas à aceitação pública obriga ao continuo incremento da inovação.
Nesta sequência, é possível entender que embora o mercado digital esteja concentrado, as dinâmicas observadas em relação aos agentes, obriga os participantes a estar sempre à frente da curva de inovação, gerando externalidades positivas à sociedade. Não o entende assim a literatura económica tradicional, que sustenta que o controle do mercado por poucos vendedores acarreta ineficiência quando comparado com o mercado livre. A teoria da firma (Coase) tem por objetivo explicar as razões para a existência de tal tipo de organização, bem como a sua potencialidade. Não há contudo acordo. Mas, a teoria da firma mais difundida entre os economistas é a teoria dos custos de transação de Willianson (prémio nobel da economia em 2009 ).
A maioria das empresas tecnológicas são plataformas digitais, que, quando geridas de forma eficiente e bem-sucedida, desfrutam dos benefícios do efeito rede (network effect). Este benefício será maior, quanto maior for o número de utilizadores nos dois lados da plataforma. As modernas corporações da economia digital revelam poder económico capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Neste sentido, não é lógico esperar que as grandes empresas tecnológicas não queiram influenciar a construção das regras do jogo, nos mercados globais e nos acordos multilaterais. É o que pensa Luigi Zingales, no artigo publicado em 2017, no prestigiado “journal of economic perspectives”, que sugere a construção de uma nova teoria política da firma, em torno do que se chama o círculo vicioso dos Médicis, família que deteve, na idade média, um extraordinário poder económico, e, como consequência, acabaram por exercer altas funções políticas e influentes no mundo ocidental, como por exemplo, o papado da igreja católica.
O que significa que a teoria de Coase de alocação de recursos no interior das empresas não segue, necessariamente a afetação de recursos no mercado. Nas empresas, quando os custos de transação são elevados, as firmas internalizam tais trocas, mas não faz muito sentido supor que os mercados seguem os mesmos padrões alocativos.
De facto, os mercados têm pouco interesse em revelar a real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder económico. O problema reside nos potenciais efeitos colaterais da concentração da economia digital refletidos nas condutas imputadas e assumidas pelos agentes. O exemplo americano, envolvendo Trump e Musk, evidencia a ausências de escrúpulos em divulgar e publicitar abertamente uma sucessão sistemática de acontecimentos viciados ao mais alto nível, entre overlords da inteligência artificial, acolitados pelo batalhão de evangelistas digitais.