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Opinião: Este País não é para velhos

17 de julho às 11h01
6 comentário(s)
Manuel Antunes, Coordenador - Cirurgia Cardiotorácica – Hospital CUF Coimbra Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

O leitor estranhará que traga para este Comentário o título de um famoso filme produzido em 2007, que ganhou 4 Óscares, baseado no romance de Cormac McCarthy, também ele vencedor do Prémio Pulitzer, e considerado por muitos como um dos melhores filmes do séc. XXI. Verá como se aplica.
Fui há dias informado por um dirigente do grupo privado de saúde onde tenho trabalhado nos últimos 6 anos, que tinha de abandonar a minha atividade clínica e cirúrgica, por ter ultrapassado o limite de idade… de 75 anos! Tanto quanto me é dado saber, os outros dois grandes grupos privados da saúde, a nível nacional, regem-se por regras idênticas.
Alguns recordar-se-ão de que algo semelhante já me tinha acontecido anteriormente quando tive de abandonar o serviço público, ao qual me tinha dedicado exclusivamente durante mais de 3 décadas, quando atingi os 70. Lembremo-nos que este limite de idade para a reforma obrigatória foi estabelecido, pela primeira vez, em 1926! Neste caso, a lei foi alterada alguns meses depois (Decreto-Lei n.º 6/2019 ) e permite agora, “em casos de interesse público excecional, devidamente fundamentado”, continuar, com vínculos de seis meses, renovando -se por períodos iguais e sucessivos, até ao limite máximo de cinco anos. Esta alteração não me atingiu por pouco mais de 4 meses! Aliás, já dois anos antes havia sido aprovada no Parlamento, por uma larga maioria, uma recomendação para ser alterada aquela lei quase centenária. Mas neste momento haverá apenas umas dúzias destes casos excecionais”, pelo que, verdadeiramente, o princípio se mantém inalterado.
Na altura, como todos os outros nas mesmas condições, aceitei os factos e, por isso, segui por outro caminho. Havia muitos doentes que me procuravam, pelo que aceitei o convite que me foi dirigido por aquela entidade privada. Mas não tinha a noção, não fui informado, de que voltaria a estar na mesma situação alguns anos depois. É evidente que não sou mais nem menos que os outros e tenho de cumprir as regras, mas a atividade clínica e cirúrgica que neste entretanto desenvolvi, sem falsas modéstias, com a mesma qualidade de sempre, mostram quão erradas eram então, aos 70 anos, como são hoje, aos 75, as regras que levam ao desaproveitamento do conhecimento e, sobretudo, da experiência, que são raros e que tanta faltam fazem a este País, nesta como noutras áreas profissionais.
Naturalmente, todos temos a noção de que a idade mais avançada traz uma diminuição das capacidades físicas e mentais do indivíduo (como parece estar a acontecer com Biden!), pelo que há que ter cautelas adicionais. O decreto n.º 16.563, de julho de 1926, invocava então a qualidade do trabalho, “que só excecionalmente se encontra em funcionários que tenham ultrapassado um certo limite de idade” e o espírito de iniciativa que “desaparece para ceder lugar à rotina” como argumentos para a aposentação obrigatória aos 70 anos na função pública. Note-se que a expetativa de vida à nascença dos portugueses era, então, de cerca de 37 anos e muito poucos atingiam os 65. Hoje é de quase 83 e, geralmente, com muito melhor qualidade. Na última década o número de centenários em Portugal quase duplicou e atinge os três mil, e prevê-se que chegue aos dez mil dentro de 25 anos!
Na atual situação de carência de profissionais da saúde no nosso SNS este desaproveitamento é absolutamente intolerável. Aliás a nova Ministra da Saúde já afirmou a sua intenção de integrar reformados no Serviço porque a “atual demografia médica não permite colmatar todas as necessidades” do SNS. E mesmo está previsto pelo Ministério da Educação. Nestes casos, não ficou (ainda) definido qualquer limite de idade e pode ser que tal venha a acontecer. O atual Bastonário da Ordem dos Médicos espera poder fazer alguma coisa neste sentido, criando um modelo de recertificação que assegure a qualidade do especialista em qualquer idade.
Devo aqui referir que a maior parte dos sindicatos e alguns partidos políticos estão contra “medidas que travem o rejuvenescimento na Função Pública”, onde a idade média subiu para os 47 anos. Mas a verdade é que, na maior parte dos casos, não há jovens que queiram ocupar as vagas deixadas pelos que se reformam. Não estou aqui a sugerir que o limite seja aumentado como regra geral, mas deveria permitir-se ir mais além a quem o quisesse, sem ser apenas em “casos de interesse público excecional”. Esse desejo deveria mesmo ser encorajado, até porque está provado que a continuidade da atividade na terceira idade tem efeitos positivos na saúde e bem-estar do indivíduo. De facto, “parar é morrer”.
Saio conformado. Sem falsa modéstia, penso que cumpri o meu dever. Afinal, como bem diz o povo, “velhos são os trapos”!

Autoria de:

Manuel Antunes

6 Comentários

  1. Duas Vidas diz:

    ❤️❤️

  2. José Maria de Melo Viana Andrade diz:

    Caro Manuel Antunes:

         Sou um dos que sabem que tu és um missionário do trabalho, personalidade com que alimentaste da melhor forma o teu percurso de cirurgião. 

         Tens agora outro marco difícil. De uma maneira ou de outra, certamente que também serás capaz de pessoalmente o ultrapassares.

           Recebe um grande abraço e a compreensão sobre os sentimentos levantados por inflexibilidades normativas.

    Com amizade,

    José Viana Andrade

  3. Victor diz:

    Há um tempo para tudo (Ecl 3,1) e o do Professor Manuel Antunes foi muito bem aproveitado. Estamos todos grupor isso!

  4. Miguel Mendes diz:

    Subscrevo inteiramente a avaliação do Prof. Manuel Antunes, cujo conhecimento científico, capacidade física e cognitiva, agudeza de raciocínio e espírito de iniciativa estão totalmente íntegros e são certificáveis por todos que com ele privam no trabalho e nos diferentes forums em que participa.
    Em Portugal, um país pobre em talentos e em gente comprometida, damo-nos ao luxo de desrespeitar alguns dos seus melhores só porque atingem uma idade convencionada arbitrariamente como aquela, em que de um dia para o outro, ficamos classificados automaticamente como inaptos. Que estupidez e que injustiça!

  5. Sofia Carvalhosa diz:

    Confesso que me emocionei ao ler este comentário do Professor Manuel Antunes. Lembro quase diariamente o “milagre” que as suas mãos e a sua equipa fizeram ao trazer de novo vida a meu Pai Mário, que ao fim de quase uma década está mais “vivaço” aos 79 do que eu aos 51 🙂
    Vivemos tempos “estranhos”… Valorizamos determinados aspectos, desvalorizando outros, que deveriam ser estruturais numa sociedade mais equilibrada.
    Espero sinceramente que mentes mais discernidas passem a gerir os nossos destinos e tomem medidas efetivas para que situações destas sejam ultrapassadas e toda a sociedade portuguesa não desperdice o talento e humanidade deste “Brilhante Homem” (e seguramente outros) para que possam continuar a mudar vidas e a tornar o futuro de todos mais risonho.
    Um bem haja Professor Manuel Antunes por ter mudado as nossas vidas!
    A minha vida entregaria nas suas mãos agora e daqui a 10, 20, 30 anos 🙂

  6. Sou o chefe da Cirurgia Cardíaca de um grande hospital do Brasil, a Santa Casa de Porto Alegre. Eu ficaria fascinado em contar com o Dr. Manuel Antunes no corpo clinico do meu hospital, pelo seu conhecimento, pela sua habilidade cirurgica e pelo seu discernimento médico. Manuel tem vindo operar anualmente no nosso hospital e ficarei muito grato a ele se continuar vindo para transmitir às nossas novas gerações as grandes contribuições que ele propiciou á nossa especialidade

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