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Opinião: Das Arruaças e Latadas à Festa das Latas

16 de outubro às 11h08
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As Latadas são festas antiquíssimas que precedem a Queima das Fitas e que têm registos desde os meados do Séc. XIX. Reza o Código de Praxe da Universidade de Coimbra, que a Festa das Latas e Imposição de Insígnias é a “festividade com que termina a recepção ao Caloiro que decorre no início do ano lectivo”.

Mas, as tradições académicas evoluem ao longo dos tempos, sendo a que hoje nos chega resultado do motor da história, o que, aliás, bem se nota lendo o nome desta festa académica – a Festa das Latas e Imposição de Insígnias já foi, simplesmente, Festa das Latas, como já foi Latada ou Arruaça das Latas, Festa do Ponto e até, nas palavras de Teófilo Braga, Tocar das Latas.
Latadas até ao início do século XX

As Latadas, eram as festas que ocorriam na noite do dia do último exame de cada Faculdade, o dia do ponto. A partir do último toque matutino da Cabra os estudantes da Faculdade de Direito e Teologia, cujos estudos terminavam atempadamente, faziam festejos ruidosos, para arreliar os colegas das outras faculdades (Medicina, Matemática e Filosofia) que ainda iriam a provas. Os Caloiros eram equipados com vários tachos, latas, cornetas, bidés, gaitas e penicos e lá iam dar cabo do rico sossego dos colegas! Isto, quer em geral quer sitiando a porta de um estudante em particular. Por estes tempos, houve quem descreve-se Coimbra como uma “atroadora sucursal do inferno”!

No livro de memórias académicas In Illo Tempore, Trindade Coelho, que cursou Direito de 1880 a 1885, descreve uma latada como sendo “a tremenda noite de Coimbra, em que ninguém prega olho, – troça aos estudantes das outras Faculdades, que ainda têm aulas no dia seguinte”.

Ao participarem no Cortejo da Latada, era dado aos Caloiros a emancipação do seu estatuto (subiam de grau). Na altura o Caloiro não podia sair de casa a partir das 20h. Tal qual hoje em dia, a Praxe vigorava a tempo inteiro, mas estando o Caloiro atado a uma lata, reconhecia-se que ele estava escudado pela “Proteção das Latas”. Durante o infernal Cortejo, os Caloiros eram perseguidos pelos Doutores armados de moca e colher a bater nas ditas latas. Se se desprendessem, o Caloiro perdia a proteção, sendo sancionado in situ, por vezes com rapanço.

Latadas do início do século XX aos anos 40

As Latadas eram bastante incomodativas para a cidade e geravam bastante conflitos entre os Estudantes e a Polícia. Como forma de limitar a algazarra gerada pelos Estudantes, em 1901, os Lentes deliberam que todos os exames acabem no mesmo dia, finando assim as Arruaças das Latas sucessivas que ocorriam a partir de Maio.

Em 1903 dá-se a Revolta do Grelo, dando origem à forte proximidade e carinho entre os Estudantes de Coimbra e as hortaliceiras do mercado D. Pedro V. Daqui, nasceu o hábito de comprar hortaliças várias no mercado, e as suas ramas deram origem ao que viria a ser o Grelo, Insígnia dos Estudantes de Coimbra e ao nabo, sustento dos Caloiros.

A Festa das Latas assumiu-se então como o marco emancipador dos Caloiros e, posto os tempos conturbados do início do século XX, o Cortejo da Latada é assimilado às celebrações da Queima das Fitas, tendo sido transferido para o dia 27 de maio onde, até hoje, o Caloiro obtém a sua manumissão seguindo o carro de um quartanista. Este Cortejo começava na Porta Férrea em direcção à Portagem, e os Caloiros eram à mesma agrilhoados em latas e desfilados. E atrás deles, lá corriam os Veteranos armados de moca e colher…!

Latadas dos anos 40 até ao Luto Académico

A partir do fim dos anos 30 ou início dos anos 40, a Festa das Latas deixou de estar associada à emancipação do Caloiro no fim do ano, passando a ser realizada no início do ano letivo e associando-se à Festa de Imposição de Insígnias, onde os estudantes merecedores de tal, impõem o Grelo.

As Latadas voltam então a ocorrer tantas quanto as faculdades, às quartas e sábados, terminados os exames de outubro. Como hoje, de manhã dava-se a Imposição de Insígnias e os Grelados seguiam até ao Mercado D. Pedro para adquirirem o nabo. Pelo caminho iam mobilizando os Caloiros e batendo às casas originando um Cortejo. Assim desfilavam os Grelados e os Fitados, de capa e batina e insígnias, bem como os Caloiros, enchidos de latas, ora bem mascarados ora com a batina do avesso.

A partir dos anos 60, devido à conjectura política de então, surge em força o Caloiro como porta-cartazes de uma melhor ou pior piada. Em tempo de censura, para não haver complicações com os da PIDE, tudo era dito em meias palavras e com uma mestra subtileza. Numa Latada de 1961, o Caloiro (isco ideal) empunhava um cartaz dizendo: “O Tó [referência a António Salazar] tem um cancro. Coitado do cancro!”.

Em 1969, com o decreto do Luto Académico, as Festas Académicas, incluindo as latadas, foram interrompidas.
Do Luto Académico até aos dias de hoje

Só muito depois do 25 de abril, a Direção-Geral organiza, em 1981, a chamada “Semana da Recepção ao Caloiro”, que teve um cortejo à moda da Latada. Esta semana decorreu sem nenhum evento especial e teve recepção mista: muitos Estudantes ainda familiarizados com o figurino das décadas anteriores, fizeram críticas ao modelo e, motivados pelo ambiente de restauração da Praxe, propuseram os moldes das antigas festas. Nesse mesmo ano, com a efetivação do regresso da Praxe Académica de Coimbra, surge a primeira Queima das Fitas desde o Luto Académico e, a partir daí, a Latada assume os moldes de hoje, como

Festa das Latas e Imposição de Insígnias.

Antecedendo o Cortejo, os novos Grelados iniciam o seu percurso até à Queima das Fitas, com a Imposição do Grelo na pasta. Agarram no Nabo e, ao transporem a Porta Férrea, iniciam a grande celebração numa explosão barulhenta e colorida de alegria. Os Caloiros, com a batina pelo avesso ou disfarçados pelos padrinhos desfilam levando sátiras e piadas mais ou menos jocosas. Permanecem equipados com latas e penicos, mas já pouco se bate nelas com a moca e a colher.

Em finais dos anos 80 vigorava ainda uma “pastada” nos Caloiros. Ao chegarem ao Parque Dr. Manuel Braga o Caloiro engrenava o galope, e os Doutores corriam atrás deles aplicando pastadas no lombo. Um acidente com o gradeamento para o rio fez recuar a intensidade da brincadeira.

Por outro lado, o baptismo, feito com o auxílio do penico, ganhou muitos adeptos e conquistou a atração terminal do evento.

É esta festa, com século e séculos de história, que Caloiros, Grelados e a demais Academia celebraram a semana passada, em todo o seu esplendor!

Autoria de:

Matias Correia

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