Opinião: “A prova cega”

Há um sulco na história da humanidade a partir do qual começámos obsessivamente à procura da clareza, diabolizando o que é escuro, atribuindo-lhe uma conotação nefasta de negrume, obscuridade e sombra. Em consequência, a suposta virtude passou a estar no ato de desvendar, abrir as cortinas, trazer luz. Dito de outra forma, afastar a noite, trazer o dia. Acender a luz, tirar do escuro.
Incorporámos na sociedade ocidental a ideia, a mítica ideia, de que a claridade vem do bem e a negritude vem do mal. Ver claro e ver escuro entram em oposição moral. A obstinação por esta ideia pode, contudo, ser um obstáculo ao próprio avanço. E até ao exercício do mérito e da igualdade. Confusos?
Paradoxalmente, é no setor cultural que mais se estimula a prática dita “escura”, através das provas cegas. A partir de meados do século anterior, nos Estados Unidos, os músicos começaram a organizar-se politicamente através de sindicatos e fundaram uma corrente a favor da igualdade de contratação. Com o tempo, as orquestras abriram o processo de contratação a vários candidatos, estabeleceram um júri oficial com vários membros da orquestra, as audições passaram a incluir três rondas eliminatórias (pré-eliminatória, semifinal e final) e foram implementadas as “blind auditions” (provas cegas).
As provas cegas consistem na seleção de candidatos, escondendo a identidade dos concorrentes através de uma cortina ou de um biombo. Desta forma, o processo de seleção torna-se mais justo, igualitário e imparcial, dado que o júri não tem como ver o aspeto físico do candidato, validando apenas a escuta musical e as virtudes técnicas audíveis.
Da mesma forma, os principais prémios literários, por exemplo, passaram a ser feitos de forma a que o júri e os organizadores estejam impossibilitados de conhecer o autor dos textos a concurso. O uso de pseudónimo torna-se obrigatório, havendo um envelope fechado onde, apenas aí, é revelado o correspondente real do pseudónimo. Um autor consagrado que se sujeite a concurso entra em igualdade com os outros concorrentes, valendo o mérito de cada trabalho.
Não há muito mais áreas em que tal aconteça. Tudo “às claras” pode não ser um bem. É que a escuridão pode emergir como o processo mais justo, mesmo contra a crença mítica do Homem.
(Pode ler a opinião na edição impressa e digital)