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Opinião: A pobreza tira-nos muito mais do que o pão

19 de outubro às 11h46
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Um relatório divulgado há dias pela Rede Europeia Anti-Pobreza concluiu que o risco de pobreza ou exclusão social já afeta uma em cada cinco pessoas, em Portugal. No nosso país, quase dois milhões de pessoas vivem – ou, melhor, sobrevivem – com menos de 591 euros por mês, sendo que 54% são mulheres. Os dados divulgados indicam que o fenómeno tem vindo a piorar: os números de 2023 mostram que há mais 20.000 pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, em relação ao ano anterior. As taxas de risco continuam acima da média europeia (em 2023, Portugal apresentou uma taxa de 17% para uma média europeia de 16,4%) e é a primeira vez em sete anos que a taxa de risco de pobreza sobe em Portugal.
Entre a população em risco, 24% são idosos (com 65 ou mais anos) e 19,5% são crianças e adolescentes. As famílias com crianças dependentes representam a maioria dos agregados pobres. Em maior ou menor escala, houve um agravamento na pobreza em quase todos os modelos de agregado doméstico com crianças, mas são as famílias monoparentais que revelam maior fragilidade: quase uma em cada três famílias monoparentais vive com menos de 591 euros por mês (valor que já inclui as comparticipações sociais). Crianças pobres têm menos acesso à Saúde, menos acesso à Educação: estamos a hipotecar o futuro.
Os dados conhecidos mostram outro cenário preocupante: os pobres estão cada vez mais pobres e não têm como quebrar o ciclo. Embora o desemprego seja um dos principais fatores de pobreza, muitas das pessoas em situação de vulnerabilidade trabalham. Uma em cada dez pessoas que tem emprego é pobre. Vou dizê-lo de outra forma: um décimo da população portuguesa levanta-se todos os dias para ir trabalhar, trabalha (no mínimo) oito horas por dia e, ainda assim, não tem capacidade financeira para adquirir bens essenciais. São pessoas saudáveis, válidas, que contribuem para a riqueza nacional e para o desenvolvimento do país, trabalhadores como qualquer um de nós, a quem é pedido, diariamente, que entreguem a sua energia, dedicação e força a um trabalho cujo vencimento é insuficiente para lhes permitir uma vida digna. Um trabalho cujo vencimento é insuficiente para permitir que eles sonhem com uma vida diferente, melhor, para os filhos. Atualmente, o salário mínimo nacional é de 820 euros, sendo o salário mínimo do Estado de 821,83 euros. O Governo quer subir este valor para 870 euros em 2025. Basta dedicarmos alguns minutos a fazer o exercício matemático de imaginar o que é viver com 820 euros por mês para perceber como a discussão sobre o aumento do salário mínimo é obscena.
A pobreza é, talvez, o desafio social mais urgente do nosso tempo: uma boa parte do equilíbrio social depende do nível de vida das famílias. Os pobres têm menos acesso à Saúde, menor esperança de vida. Têm menos acesso à Educação e, portanto, menos acesso a boas oportunidades. A Democracia é posta em causa pelo risco de pobreza: os pobres têm menos voz, menor capacidade de lutar pelos seus direitos, de exigir mais e fazer escolhas mais informadas. A pobreza limita a capacidade de decisão e as escolhas. Aos pobres roubamos muito mais do que o pão: tiramos-lhes a qualidade de vida, a Liberdade, a esperança, o direito à felicidade e ao sonho. Roubamos-lhes o futuro – o deles e o dos filhos. A pobreza é cíclica: é causa e efeito. Muitas situações de pobreza são fruto da exclusão social, da desigualdade, da falta de justiça e equidade, da intolerância, do racismo, dos estigmas. A pobreza é uma luta de cidadania, que nos convoca a todos porque atenta contra o mundo com que sonhamos. Tira-nos o pão, mas tira-nos muito mais do que isso. Tira-nos, individualmente, a capacidade de sonhar e, coletivamente, a capacidade de construir o sonho.

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