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Opinião: A água é direito humano e o corte algo de insano!

27 de outubro às 11 h19
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O nosso preito de homenagem a Catarina de Albuquerque, que connosco cooperou intensamente e nos deixou, há dias, na flor da idade: primeira Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento entre 2008 e 2014, teve decisivo papel no reconhecimento do direito à água potável e ao saneamento básico como Direito Humano Universal (Assembleia-Geral de 28 de Julho de 2010).

O Conselho de Direitos Humanos, a 30 de Setembro de 2010, reiterou a deliberação e destacou o direito à água e saneamento como inalienável componente do direito a um nível de vida adequado, em paralelo com o direito à habitação ou à alimentação.
Como corolário, jamais se deveria consentir na suspensão de fornecimento de água aos cidadãos. Como, aliás, o fazem determinados países em consonância com os princípios sufragados.

Eça de Queiroz, de certa feita, surpreendido com um inopinado “corte” de água, endereçou ao Director da Companhia da Águas, destacado elemento do Partido Legitimista, o Senhor Pinto Coelho, uma carta hilariante, com o perfume do tempo:

“Dois factores igualmente importantes para mim, me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.

Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas, a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o meu contador, Exm.º Senhor, que eu o interponha nas relações de V. Ex.ª com o mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira.

E pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos contratos. Em virtude de um escrito devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim, temos nós – um para com o outro – certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V. Ex.ª pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse.

V. Ex.ª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V. Ex.ª fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não pagar; V. Ex.ª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V. Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não fornecer, o que hei-de eu fazer com o Senhor?

É evidente que, para que o nosso contrato não seja verdadeiramente leonino, eu preciso, no caso análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a minha canalização, de cortar alguma coisa a V. Ex.ª. Oh! e hei-de cortar-lha!…

Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos.

Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e razoável, perante o direito e a justiça distributiva; quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!

Rogo-lhe, Exm.º Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V. Ex.ª
Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª,
Com muita consideração e com umas tesouras…”
A generalidade dos ordenamentos jurídicos continua a permitir a “excepção de não cumprimento”: quem não cumpre sujeita-se ao corte do fornecimento.

Os franceses, de forma modelar, ditaram sentença de morte ao corte!
Se sobrevier o não pagamento, cobrança por outros meios, à margem da coacção induzida pelo corte .

Para além de medidas avulsas, Portugal, ao invés da Espanha e da França, não tem, ao que parece, uma política firme no domínio da água. As entidades gestoras agem a seu bel talante.

Muita água correrá ainda por baixo das pontes até que países como o nosso, pouco flexíveis nas suas políticas de “esquerdo, direito, um dois…”, levem às últimas consequências a circunstância de a água e o saneamento serem direito humano.

Há coisas elementares. Não podem cair em olvido. Porque se prendem com o quotidiano das gentes. Mas desafortunamente é o que sucede!

Teremos de continuar a agitar as águas… para que se possa ter uma diferente consideração para com os consumidores da água.
Da água, direito humano! Com norte e… sem corte!

Autoria de:

Mário Frota

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