Opinião: Liberdade de Abril condicionada

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Entre os políticos de relevo da minha geração, lá bem no alto, figura Nelson Mandela, Prémio Nobel da Paz e primeiro Presidente da África do Sul livre. É difícil imaginar como é que uma criança negra nascida e criada numa simples cubata africana, em zona rural, pôde subir os degraus da educação, privilégio de branco, e sofrer a consciência da humilhação do seu povo para se tornar o libertador das garras da tirania branca. A sua autobiografia, que intitulou “Um longo Caminho para a Liberdade” (Planeta, 2012 ), é ao mesmo tempo um livro arrepiante, quase diria dantesco, pela natureza e crueldade das torturas ao longo de 27 anos de prisão, e uma narrativa épica, que a pouco e pouco vai superando adversários e adversidades até à vitória final. Mandela encontrou pela frente um regime racista, segregacionista, ditatorial, assente no apartheid e na supremacia branca. Foi tão longo o caminho para a liberdade que só um homem com a sua dimensão humana poderia percorrer com sucesso .
Adotou uma política de não violência, mas quando o adversário faz da violência a sua arma de combate, só a violência seria a resposta adequada e eficaz. Muitos milhares de negros foram mortos às mãos do exército e das polícias governamentais. Nesta luta, o partido de Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC), não esteve sozinho, aliou-se a outros partidos, incluindo o Partido Comunista. Quando o governo se viu cercado interna e externamente e obrigado a negociar a paz, quis impor duas condições: que o ANC abdicasse da violência e que se desligasse da coligação com o PC. Mandela não cedeu um milímetro. A fonte da violência era o governo. No momento em que depusesse as armas, de imediato a oposição seguiria o mesmo caminho. Quanto ao PC, no interior do próprio ANC havia defensores do afastamento, mas Mandela foi claro: os partidos que lutam pelas mesmas causas que nós – o derrube do apartheid e da supremacia branca – não são nossos adversários, são nossos aliados.
As comemorações do 25 de Abril em Portugal lembram-me sempre o 27 de Abril na África do Sul. A liberdade foi o bem supremo em boa hora conquistado por heróis que nunca é demais celebrar. Mas cá, como lá, vencer o fascismo não foi suficiente. Vencer o ciclo negro do apartheid e a supremacia branca, fundamentais para abrir outras portas, não sarou todas as feridas. O povo continuou pobre e os ricos ficaram mais ricos. Os mesmos. O 25 de Abril trouxe-nos o bem prioritário, essencial, que é a liberdade. O problema é que a liberdade não é igual para todos, os direitos fundamentais não estão ao alcance de todos. A liberdade não é compatível com a pobreza. O pobre não é livre de ter a sua casa, de ter uma alimentação saudável, de ir ao médico, de estudar na universidade ou até mesmo de se defender na justiça. Ser livre é um passo necessário mas insuficiente. Tanta coisa que não podemos fazer em liberdade. Não temos liberdade para ser livres. É o que nos falta para cumprir Abril. Há liberdade plena para alguns, condicionada para muitos. Não é o 25 de Abril que sonhamos: PARA TODOS.
A minha admiração por Mandela não me obriga a esconder críticas que vieram de onde menos se esperaria, do interior do próprio partido e da mulher da sua vida ao longo da luta política, Winnie Madikizela. No partido considerou-se que Mandela se preocupou mais com a reconciliação do que com as reformas para elevar o nível de vida das populações negras e Winnie não escondeu que o ex-marido dececionou os negros sul africanos mantendo ou agravando as desigualdades. Mandela deu a vida pelo seu povo, arriscou sem hesitar a pena de morte, mas os negros continuaram pobres e os brancos continuaram ricos. Esta acusação tem fundamento, mas Mandela tinha consciência, que afirma na sua autobiografia, que os sul africanos brancos, nascidos e criados na África do Sul, são tão sul-africanos como os negros. Por outro lado, ele sabia que os brancos, longe do poder, tinham os mais elevados níveis académicos e de especialização, eram os mais preparados para o desenvolvimento económico. A rotura total não aproveitaria a ninguém.
Os bravos e gloriosos Capitães de Abril acabaram por se curvar demasiado cedo perante as altas patentes militares, os generais do regime, e perante políticos com negócios e interesses pessoais em África. O MFA foi rapidamente absorvido pelas lógicas partidárias, por um lado, e por personalidades do antigo regime que logo se infiltraram no Movimento. Os objetivos da revolução, os três Ds do MFA, – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver -, mirraram pelo caminho. Os “profissionais da democracia” só contam os votos, não se prendem com “ninharias” como as grandes desigualdades e os elevados índices de pobreza; a descolonização foi mais imposta que consentida, torpedeada por personalidades com outros interesses; o desenvolvimento, ao fim de 50 anos, continua dependente e à espera, sempre à espera das migalhas da Europa.
Mandela construiu o diálogo entre as partes envolvidas no interesse comum. Ao povo não interessam as guerras entre partidos, interessa que o governo consolide a liberdade, combata as desigualdades e melhore as condições de vida dos mais desfavorecidos. Ao povo interessa que se cumpram os direitos humanos. É o que nos falta fazer.

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