Opinião: Educação: a cultura da dependência

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A autonomia é o chavão dos discursos de estado. A dependência é a condição a que o estado nos conduziu.
Eu saí da casa de meus pais aos 10 anos, quando fiz a 4ª classe e fui para o Liceu. Da organização e disciplina familiar bem estruturadas, passei a habitar um quarto numa casa de hóspedes, sendo responsável pela gestão da minha vida pessoal e escolar. O tempo do Liceu foi a transição para a independência e para a autonomia. Nem tudo correu bem, mas acabou bem. Concluí o Liceu com boas notas e entrei na Universidade. A iniciativa é filha da necessidade.
Portugal é um dos países onde os filhos ficam mais tempo na dependência dos pais. Dependência económica e sem ousadia para planificar e construir a autonomia. É a geração nim, não estudam nem trabalham. Muitas crianças da geração dos meus filhos, hoje a passar dos 40, parecem sofrer de abulia e permanecem “no doce aconchego familiar”, alguns licenciados e com boas oportunidades de trabalho. No mundo desregulado em que vivemos é elevado o número de jovens que sofrem de perturbações mentais com impacto no seu percurso escolar e profissional. Mas a mentalidade e a cultura em Portugal, na família e na escola, contribuem muito para esta geração nim. As crianças e jovens não são educados para a independência e para a autonomia. Para quê trabalhar se dispõem de tudo o que precisam? Estamos perante uma espécie de atrofia mental que lhes retira a capacidade de lutar.
Há pais entre os 70 e 80, com bons níveis sociais e económicos, atormentados com a ideia de deixar os filhos na inércia que conduz à pobreza. Nem os pais nem a escola estimulam a autonomia, a independência e a iniciativa dos jovens, pelo contrário, educam para a passividade, na feliz expressão de João Formosinho. Muitas crianças e jovens sentem-se dispensados de pensar e agir porque há sempre quem pense e faça por eles.
Nas minhas andanças por outros países, sobretudo no norte da Europa, acordei para uma mentalidade totalmente diferente desta pacífica acomodação lusitana. Numa escola secundária na Dinamarca, condado de Viborg, pude conhecer alunas finalistas, 18 anos, totalmente independentes dos pais, em termos de habitação e de sustentabilidade económica. E fiquei escandalizado quando uma me disse que era responsável pela limpeza dos espaços comuns num prédio de habitação e outra se ocupava da assistência a um casal de idosos. O suficiente para terem a sua total independência em termos de residência e de finanças. Trabalhavam e estudavam. Tenho duas filhas que teriam então uma idade aproximada e pensei: se permitisse que seguissem os exemplos das duas jovens dinamarquesas, diriam que eu era um tirano e um imbecil.
Tenho agora uma neta que fez todo o seu percurso escolar no Reino Unido, desde o pré-escolar. Aos 18 anos candidatou-se à Universidade e decidiu que era tempo de assumir a sua maioridade e de ter a sua vida autónoma e independente. Reunia todas as condições para escolher, mas excluiu as faculdades da sua área de residência. Ninguém interferiu nas suas escolhas, ela estava preparada para assumir a sua independência e autonomia. É rica e pode pagar! Não, o estado assume a cultura de emancipação dos filhos maiores de idade e concede a todos, sem exceção, os meios para definirem e seguirem o seu caminho. As bolsas (loans, empréstimos reembolsáveis) cobrem as despesas de alimentação e de residência e refletem a situação económica dos pais, sendo de maior valor para os estudantes mais carenciados.
No Reino Unido, como nos países nórdicos, para além da educação para a autonomia, existe a disponibilidade para o trabalho. O próprio mercado de trabalho conta com a disponibilidade dos estudantes e a universidade acompanha e recomenda que não ultrapassem as 15 horas semanais para não comprometer os estudos. Esta experiência de trabalho também faz parte do crescimento e permite responder às despesas pessoais dos estudantes. Trabalhando aos fins de semana num café-pastelaria, a minha neta juntou o suficiente para viajar nas férias de verão por essa europa fora, sem esquecer o país e a cidade onde nasceu. Independência e autonomia também é isto, as pessoas aprenderem a gerir responsavelmente a sua vida pessoal e académica.
Tenho um jovem amigo médico que nasceu e cresceu em Coimbra até à Universidade. Optou por fazer o curso em Lisboa, longe da família, sem precisar de apoios do estado. Nos seus vinte e seis anos, tem total autonomia, total independência, enorme espírito de iniciativa, total capacidade de movimentos por esse mundo fora. Se continuasse em casa, continuaria porventura “o menino da mamã”, à espera que lhe levasse o pequeno almoço à cama, como outros que conheço.
Sair de casa aos 10 só em última análise. Envolve riscos imprevisíveis. Ficar em casa na maioridade envolve riscos maiores e bem previsíveis: falta de autonomia e de iniciativa e uma total dependência que conduzem a um envelhecimento precoce e a um fim triste.
Quando vim “lá das berças” para a Universidade, anos 50-60 do século passado, vim um pouco à experiência. Eu não sabia se as minhas despesas de alojamento, de alimentação e académicas cabiam na magra economia familiar. Mas não parei enquanto não encontrei os caminhos da autonomia e independência. No 1º ano recorri à Sociedade Filantrópica e Académica de Coimbra que me concedeu uma bolsa, a reembolsar depois do curso, que me permitiu frequentar a cantina da Universidade, então no Palácio dos Grilos; e assegurou-me um quarto com excelentes condições numa residência universitária, pelo preço de 180 escudos por mês. Foi a minha salvação. Nos anos seguintes, já familiarizado com o meio, assegurei a sustentabilidade jogando futebol e dando aulas ainda antes de concluir o curso.
O governo atual enfrenta dois problemas da maior gravidade para a economia do país: despreza milhares de estudantes que impede de frequentarem o ensino superior por incapacidade financeira e exporta muitos daqueles que forma para países que agradecem o bónus e recebem quadros superiores em que não investiram um cêntimo.
Neste momento estão em curso investimentos importantes em novas residências universitárias. Mais vale tarde que nunca. Mas as políticas educativas dos últimos anos estão orientadas para o empobrecimento: exportamos uma grande parte daqueles que formamos, ficamos com aqueles que não formamos. Exportamos o grão e ficamos com a palha.

Pode ler a opinião na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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