Opinião – O sonho desfeito das crianças

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A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/1989 e ratificada por Portugal em 21/10/1990, considera que “Criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei (…), atingir a maioridade mais cedo”. A escolaridade obrigatória (EO) é o mundo das crianças. Antes e depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Organização das Nações Unidas proclamou que a infância tem direito a uma ajuda e assistência especiais, reafirmada em inúmeros pactos e convenções internacionais. Um mundo de promessas por cumprir, num universo de desigualdades que se agravaram com a pandemia em todo o mundo. Portugal não fica bem neste retrato.
A nova Agenda 2030 das Nações Unidas vem demonstrar o desencanto ou mesmo o fracasso da Carta dos Direitos Humanos, dos pactos e convenções celebrados ao longo de um século, que todos os países proclamam, mas muito poucos cumprem. São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 2016-2030 ), mas enumero apenas os 4 primeiros: 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas e em todos os lugares. 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. 3. Garantir uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades. 4. Garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. A primeira questão que aqui se coloca é a de saber como se pode atingir o ODS4 sem ter resolvido os três primeiros. A pobreza, a fome, a vida saudável e o bem-estar são condições prévias para cumprir o ODS 4: “educação inclusiva e equitativa de qualidade para todos”.
Nos trabalhos de investigação que desenvolvi no fim da década de 80 sobre o estado da educação em Angola e S. Tomé, para a Unicef, e as ações de formação que desenvolvi em Moçambique já neste milénio, com a Universidade Pedagógica, a primeira grande lição foi simples e clara: ninguém aprende bem com a barriga vazia. Para garantir a presença e participação ativa de inspetores, diretores de escolas e professores, era fundamental proporcionar-lhes as refeições da manhã, do almoço e a meio da tarde. Cumprido este requisito, ninguém faltava. E as crianças? Um mundo inenarrável de impedimentos à “educação inclusiva e equitativa de qualidade”. A fome é um forte inibidor cerebral e quando falamos de crianças o universo é bem mais vasto que o dos professores. A exclusão escolar é diretamente proporcional à fome e à pobreza.
A “imprensa da pandemia” revelou que o problema da pobreza, da fome e das desigualdades gritantes não é apenas um problema de África, ou de países em vias de desenvolvimento, é um problema de países ricos e poderosos, como o Reino Unido e os Estados Unidos da América, com enormes bolsas de pobreza. Em Portugal, o problema é mais profundo e atingiu uma boa parte da classe média. Muitos profissionais diplomados pelas universidades e outras escolas superiores tiveram de recorrer às “cozinhas económicas”, numa humilhação que não lhes passava pela cabeça. Quando assim é, que será dos pobres de sempre, dos bairros esquecidos e degradados, onde o bem-estar não passa de pura utopia?
Neste mundo de desigualdades tão chocantes que permite aos ricos e corruptos gozar férias de luxo em paraísos protegidos, ao mesmo tempo que sacrifica crianças que se perdem por falta de apoios, o estado é uma deceção, uma revolta e uma hipocrisia sem limites. Onde fica aqui a inclusão tão proclamada na legislação e na retórica oficial? Onde é que está assegurado o sucesso de todos? Onde está a escola em que nenhum aluno fica para trás? Porque é que é enorme a diferença entre o número de alunos de uma coorte à entrada e à saída de um ciclo? Onde estão os computadores prometidos, o sonho desfeito de crianças desprezadas? A educação está refém de uma economia de sentido único e de um governo que nega às crianças uma educação inclusiva e equitativa de qualidade. Que impede as crianças de serem felizes.

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